28 de maio de 2012

Harém #01 - Sopro na Colina



Os lisos cabelos escuros balançavam com o vento. Ele subia a colina com suas pernas compridas e extremamente magras. Não era alto, mas a magreza enganava olhares despercebidos. Altura desconhecida; nome desconhecido. Se auto-intitulava como Muck, por razões igualmente desconhecidas. O rosto apresentava certo tom amarelado, quase doentio. Segurava um cigarro entre os dentes, que fazia questão de manter protegido pelas duas mãos.
O vento era forte. Muito, muito forte.
Muck sentia os pés falharem, o corpo ser ligeiramente precipitado para trás. Se pesasse cinco quilos a menos, então provavelmente seria levado pelo ar numa visão não tão divertida. Ele envolveu o cigarro com as mãos e continuar a subir a colina.
O céu era claro como a inocência, fortemente azul e incrivelmente ensolarado. Não era verão, e sim inverno, mas isso não importava. Cabiam na gaveta dos detalhes desprezíveis. A relva verde ondulava assim como seus cabelos, soprando um leve aroma de mato aquecido. Muck persistiu na sua jornada. Subiu a colina. Propagou passos largos, calmos, urgentes, mas tranqüilos. Usava roupas escuras, mas mescladas – resultado da coleta que semanalmente exercia nos lixeiros do mundo. Um lenço vermelho encobria o pescoço, para eventuais tempestades de areia (elas estavam ficando freqüentes a partir de alguns anos, juntamente com as tempestades de neve que insistiam soprar no verão). Sim, o clima estava uma loucura, os pólos haviam mudado e todas as crenças também. O mundo não era mundo. Era apenas uma imensa vastidão de sobrevivência e parcerias. Nada mais, nada menos.
O vento soprou forte em seu ouvido. Ele ergueu a cabeça, abrindo os olhos – um verde e o outro castanho.
A criança estava lá.
No topo da colina. Cabelinhos na altura dos ombros, pele negra, lisa e perfeita. Olhos fechados enquanto os dedinhos dançavam pela flauta dourada – reluzindo os raios do Sol como a espada dos anjos. A melodia, no entanto, era dispersada entre o vento forte. Muck não ouvia nada, mas sabia das histórias que contavam sobre aquela criança. Bastava ouvir o lamuriar de sua flauta e a vida se esvaía da carne, como chamas nos desertos gelados do noroeste. Perdendo-se e dissipando, para não mais voltar.
A criança continuou com o tocar de sua flauta. Muck sabia que havia um som, mas ele não poderia ouvir. Ele não era um dos escolhidos para tal glória. Ele se ajoelhou ao lado da criança, jogou fora o cigarro e observou o horizonte. Moveu os lábios. Hesitou. Apertou a grama entre os dedos e falou baixo, sabendo que não seria necessário aumentar a força da voz devido à ventania. A criança escutaria, de uma forma ou de outra. Ela tudo escutava.
- Eu a encontrei... Ou o encontrei. – Corrigiu-se, lembrando que a criança não possuía sexo definido. – O que prova que eles estarão aqui em poucos dias. Se eu cheguei, eles também o farão.
A criança não abriu os olhos. Continuou tocando.
- Serei breve. – Muck semicerrou os olhos e os baixou, em sinal de respeito e súplica. – A terceira criança está desaparecida. Há anos. Creio ter encontrado um jeito de localizá-la. Um sinal. Mas eu preciso de você e, obviamente, de sua glória. Em anos de criação, é a primeira vez que peço ajuda. Por favor, venha comigo.
A criança moveu a cabeça, mas tudo não passou de um leve movimento de excitação à sua canção. A flauta era tocada em silêncio, o vento, o sol e o cheiro da relva continuavam fortes. Muck se levantou, movendo a cabeça numa breve reverenciação. Ele entendia o silêncio da criança. Uma vez dita suas palavras de desabafo ou súplica, o menino ou menina as absorvia e guardava. O pedido havia sido feito. A resposta viria em algumas horas, em alguns dias ou anos. Talvez nunca viesse.
- Tome cuidado. Logo eles virão atrás de você. Não se deixe levar. A Fonte alcançou e se comparou seu esplendor, não se esqueça. – Reverenciou novamente e virou de costas.  
Desceu a colina, satisfeito por ter cumprido a meta que traçara há tanto tempo. Pôs a mão dentro do bolso da calça e puxou outro cigarro, colocou-o na boca e, antes de acendê-lo, notou a súbita mudança no ar. O vento cessou. O Sol perdeu seu brilho – encoberto pelas nuvens. Um ar frio soprou, Muck sentiu nas costas. Ele engoliu em seco, já que nunca sabia o que as mudanças no clima significavam, poderiam ser um leque de opções. Era sempre impossível interpretar.
Guardou o cigarro e puxou o lenço vermelho para cima, cobrindo o rosto na altura do nariz. Suspirou pesado e sentiu a massa de ar quente tentar se chocar com o ambiente de fora. A temperatura caiu vários graus. Ele puxou o capuz da roupa e protegeu o rosto. Ouviu passos leves no solo, mas não necessitou virar o rosto para saber que a criança tinha se levantado.
O menino ou menina parou ao lado de Muck, segurando a mão do rapaz com seu toquezinho quente. A criança vestia uma camiseta vermelha salpicada por bolinhas pretas, um short escuro e um all star com a mesma cor da camisa. Carregava a flauta dourada na outra mão – o objeto não perdera seu brilho, Muck evitava ao máximo repousar os olhos sobre o instrumento musical.
A criança não olhou para Muck, tampouco disse ou sinalizou algo. O simples fato de ter segurado na mão do rapaz já dizia alguma coisa.
Muck assentiu, apertou a mãozinha da criança como forma de conforto. Os dois desceram a colina, pelo mesmo caminho que o andarilho traçara.
Ele olhou para cima e fechou os olhos. Não acreditava, mas estava pedindo a ajuda da sorte, agora.
Os dois caminharam de mãos dadas, juntos. Em direção ao paradeiro da terceira criança, seja lá onde estivesse.
A neve caiu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário