12 de novembro de 2012

Capítulo I, Jingle Bell Rock




Red From Christmas, Capítulo I, Jingle Bell Rock

O vasto bosque era cortado por trilhas de passeio. Placas metálicas fincadas no chão com hastes de madeira sinalizavam a exata localização do perímetro, com indicações de outros caminhos (pequenos postos de atendimento de guardas), além de mensagens alertando para a conscientização de não poluição do lugar, já que era uma área de preservação ambiental aberta ao público da pequena cidade, usada para o lazer. As imensas árvores estavam desfolhadas e esbranquiçadas, retraídas e tímidas em função do inverno. A brisa fraca estimulava o mover dos galhos mais esguios e finos, embora não se mexessem tanto. Poucos animais pintavam o quadro melancólico do bosque, volta e meia alguns deles surgiam através da neve acumulada sobre o solo, saíam correndo e se escondiam entre o horizonte das árvores ou sob tocas na terra.
O alambrado em caracol de mais ou menos 1 metro de altura ladeava a trilha, limitando o acesso de pessoas – fácil pular, mas o aviso raramente era desrespeitado. O segmento metálico ocupava o amplo espaço do lugar, organizando a trilha. Ao ar livre, a área ambiental servia de fácil acesso – e grátis – aos habitantes da cidade, assim como oferecia pesquisas para colégios ou âmbitos científicos mais regionais de universidades próximas à cidade. A segurança de uma rede privada fora contratada pela gerência da prefeitura e exercia o serviço geral de controle e monitoramento. A logística permitia o estratégico posicionamento de homens uniformizados e armados, apesar de não utilizarem as armas para fins mais extremos (nunca houve situações que exigissem isso). Alguns tinham a função de monitorar certos perímetros a pé, enquanto outros monitoravam em pequenas tendas de madeira, distribuídas pelo imenso espaço que o parque e bosque detinham, cada uma com estoques de medicamentos para primeiros socorros, além de rádio para a comunicação entre os guardas e vários outros aparatos em casos de emergências. A administração fluía bem.
Apesar de toda a boa eficiência dos guardas, entre as árvores, afastados e longe da atenção de qualquer um, dois garotos estavam de pé sobre a neve fofa. Um deles segurava o punho direito entre a palma esquerda, num frenesi quase doentio e sádico. O outro parecia ter mais controle da situação, embora também demonstrasse sadismo no olhar; seus cabelos crespos e castanhos estavam embaraçados, enquanto segurava uma terceira figura pelo pescoço e forçava-o num mergulho torturante no chão, espremendo e abafando seus gemidos.
Entre a neve, o rosto de Evan Dover era massacrado como um lixo qualquer.

Ele se debatia com extremo esforço, lutando para que de alguma forma conseguisse sair dali, mas suas tentativas eram em vão e seu corpo ficava cada vez mais cansado. As mãos agarravam a neve com certo tom de desespero, onde tentava erguer o próprio corpo com a força que reunia com ambos os braços e, como era de se esperar: suas tentativas foram em vão.
- Seu pirralho maluco! – Chris gargalhava entre as palavras, enquanto segurava o pescoço de Evan com firmeza. Ele era o torturador com olhar menos diabólico – Sabe o que pirralhos malucos merecem?
- Isso aí, Chris. – O outro garoto bravejou excitado, socando a palma da mão como alguém que espera ansiosamente por uma luta. – Manda ver nesse merdinha!
A tortura pareceu intensificar. Evan se debatia com mais força, sua voz era abafada pela neve espessa que o cobria o rosto, o ar faltava e a face ficava mais dormente, ele mal conseguia sentir o sangue correndo na pele.
- O que pirralhos malucos merecem é isso! – Quando Chris terminou, as mãos que pressionavam todo o corpo de Evan contra a neve se soltaram, dando-o uma chance de liberdade.
O garoto cativo se virou e passou as mãos pelo rosto para tirar a neve que ainda havia ali, em seguida puxou o ar para pulmões com força e urgência. Embora o ar estivesse congelante, ele entrou no corpo de Evan de um jeito quente e acolhedor, como se estivesse tomando uma sopa quente. Não. Era ainda melhor. Seu peito arquejava, para cima e para baixo, devido ao oxigênio que lhe corria o sangue, e parecia devolvê-lo a coloração normal do rosto.
Enquanto sentia toda essa sensação de liberdade, ouvia as gargalhadas dos dois garotos. Eles se divertiam tanto com aquela tortura que Evan chegou a cogitar se realmente fossem humanos, achando que não passavam de monstros saídos de um filme trash de terror.
- Pirralho maluco. – Chris cuspiu. – Inventa histórias malucas e pensa que realmente vamos cair nessa?
Evan abriu os olhos com esforço e a luz do dia lhe ardeu. Ele gemeu com aquilo, mas de forma tão baixa que mal conseguiu ouvir a si próprio. Protegeu os olhos com o antebraço direito e fitou o garoto diante dele com pena e desespero.
- Você precisa acreditar em mim, Christian. Eu falo a verdade. – Evan conseguiu dizer, embora a voz estivesse mais danificada e estranha do que pudesse imaginar. – Acredite em mim, é verdade!
Novamente, os garotos riram. Gargalhavam com sarcasmo, o fizeram por um longo tempo antes de Chris depositar um chute no estômago de Evan, fazendo-o soltar um grito de dor sofrido e abafado.
- Beleza, beleza! – Christian murmurou desdenhoso. Abaixou-se para agarrar Evan pelo colarinho do suéter. Seus rostos ficaram o mais próximo que jamais ficariam, despertando o medo do garoto que estava no chão sofrendo com todas as dores. – Vou te dizer pela última vez: Não me venha com essas histórias de criança e nem tenta me convencer de que esse papo é verdade. Filho de uma puta, tá brincando com a gente? Eu não vou cair nessa, não teve a menor graça – exceto pela parte de te dar uma surra. Então, Evan, sugiro que não fale mais sobre isso, nem comente perto de mim, porque da próxima vez não teremos pena. Sei que você é um cara inteligente, estudioso e acima de tudo, nerd, tenho a certeza de que vai entender e parar com isso.
Evan suspirou pesadamente. Sentia medo e receio a cada frase que Chris despejava, como se um golpe estivesse escondido atrás da próxima palavra a ser dita. Levado por todos esses motivos, tudo o que Evan pôde fazer foi assentir de um jeito desesperado, já que seu medo falara mais alto e não queria levar outra surra.
- Perfeito! Eu sabia, você é um garoto esperto. – Chris apertou as mãos no colarinho de Evan com mais força, soltou um sorriso após demonstrar uma expressão surpresa. – Ah, e eu quase ia esquecendo... – O sorriso em seu rosto sumiu, agora era tomado de raiva. – Fique longe dela, seu sonhador-idiota-pirralho-maluco. Longe dela!
Em seguida, segurou o garoto apenas com uma das mãos enquanto ergueu a outra, contraindo os punhos para um golpe que Evan sabia que não escaparia. A certeza veio sem mais delongas: Chris depositou-lhe um soco no rosto, na lateral esquerda logo acima do olho. Evan bateu com a face na neve, observando um líquido quente colorir a superfície branca da qual estava deitado. Ouviu as gargalhadas dos dois garotos ao longe, estavam se distanciando e, entre elas, pôde ouvir três palavras que apenas aumentaram seu desespero: “monstros não existem”. Ele desejou sair dali correndo e provar o contrário, garantiria a segurança daqueles dois e de outras pessoas, mas não tinha forças, ele não conseguiria – pelo menos não pelos primeiros quinze minutos. Sentiu seu corpo relaxar e a visão tornar-se turva, aos poucos os sentidos o abandonavam.
Ficou estirado naquele chão esbranquiçado com uma pequena poça de sangue escorrendo do rosto.
Tudo ficou negro.  

Decerto o clima de Natal agradava qualquer um: enchia-lhe o peito de vigor e tranquilidade, seu espírito parecia energizar-se com uma onda de sentimentos bons e humildes, não havia maldade nem violência nos corações das pessoas. A igualdade reinava como num mundo fictício e comunista, a solidariedade era vista por cada esquina, onde homens ricos sob seus trajes refinados aproximavam-se dos mendigos nas ruas e dividiam o alimento ou palavras amigas.
A trilha sonora natalina era mais revigorante ainda, aqueles sinos e guizos suaves ecoando nos ouvidos de cada pessoa traziam paz e harmonia. O natal era, sem dúvida alguma, a melhor época do ano para se enxergar o lado bom de cada indivíduo.
E apesar de tudo isso, Evan não conseguia sentir esse espírito dentro de si. Sabia do efeito do natal, sempre o sentira agir nele, gostava de uma forma irrefutável, arrancava-lhe sorrisos e alegria. Mas somente daquela vez, tais sensações não o ocorriam. Estava caminhando cautelosamente pela sua rua, mancando com a perna direita e fazendo o máximo de esforço para que ninguém percebesse. Ainda sentia um filete de sangue percorrê-lo a lateral do rosto, escorrendo através de seu pescoço e manchando sua roupa por baixo do grosso suéter. Caminhava de cabeça baixa, a cada passo que dava, soltava um gemido de dor, e de vez em quando varria o olhar pelo ambiente para garantir que ninguém o observava com atenção, já que não queria de forma alguma que o percebessem naquele estado. Iria gerar muito alvoroço, era tudo o que ele menos queria, já não bastava tentar - com fracasso - resolver os problemas com discrição.   
Alguns grupos já se reuniam na frente das casas, cantando as típicas canções natalinas naquele coro suavemente infantil e feminino, o Sol já anunciava sua partida e a rua começava a ficar mais brilhante com todos os seus enfeites e arranjos natalinos. Evan apressou o passo ao notar que o movimento já não estava tão intenso, e mancava mais ainda enquanto os gemidos de dor tornavam-se mais altos. Não tem ninguém olhando, ainda bem.  Aos poucos observou o brilho de sua casa, estava feliz por saber que já estava chegando e que enfim poderia tomar um banho quente e se limpar de todo o estrago que Chris e seu maldito amiguinho haviam causado. Mas, isso não era tudo. Não queria pensar que nem tudo já estava resolvido, não queria encher a mente com a ideia de que pessoas corriam perigo e que a tarefa de protegê-las era o mais difícil possível, tomando o fato de que ninguém jamais acreditaria em suas palavras.
Pirralho maluco
Ao contrário do que se podia imaginar, Evan não tinha o estereótipo de “nerd”. Seu corpo era um tanto atlético, e isso devido à boa genética que herdara do pai: os cabelos loiros e desgrenhados, olhos verdes tão escuros que mal podia-se distinguir o verde;  as linhas de seus rosto eram delicadas, mas fortes e expressivas, transmitindo segurança a qualquer pessoa que estivesse ao seu lado. Mas suas características físicas não ajudavam muito, e nem o definiam por completo. Não usava o corpo como arma, não praticava um esporte em específico, apenas o usava nos dias de educação física no colégio. Optava por ficar em casa e ouvir suas músicas preferidas embargado dentro do próprio quarto, era um aluno dito “exemplar” e nunca causava problemas ou estava envolvido em conflitos. Pelo fato de se manter reservado – e por que não, deslocado -, todos o julgavam como “mais um nerd estranho na face da terra”, o que geralmente afastava as pessoas mais legais que ele sempre tivera vontade de conhecer.
No entanto, só havia uma pessoa que não se encaixava naquela descrição. A única pessoa legal da qual não fazia parte de seu mundo isolado, e que ainda assim mantinha uma boa aproximação com Evan. Somente por esse motivo é que ele não se sentia tão fracassado, pois sabia quanta sorte tinha por tal pessoa falar com ele. Ela não era a garota mais cobiçada do colégio, tampouco uma das muitas, era linda e seu corpo esculturalmente delicado arrancava suspiros maliciosos de cada garoto. Chamava-se Stacy Watson, e exatamente por sua razão que Evan estancou assim que se aproximou da própria casa.
Lá estava ela: os cabelos negros esvoaçando com a brisa gélida de inverno, os lábios rosados e delinearmente perfeitos movendo-se enquanto falava, os olhos singelos sob as sobrancelhas grossas e expressivas. Estava na frente de sua casa, conversando de um jeito sutil com... Com seu namorado.
Aquela imagem afetava Evan de um jeito estranho, ele sentia ciúmes e indignação, principalmente por saber que o namorado da garota somente estava com ela para esbanjar a título de posse. As mãos dele seguravam-na pela cintura, numa tentativa idiota de puxá-la mais contra seu corpo. O olhar dele transmitia todas as intenções maliciosas, bem como as expressões falsárias que surgiam a cada duas palavras em seu rosto.
Evan ainda estava paralisado. Mordia o canto do lábio inferior com irritação, sentindo todo o seu corpo ferver e a dor sumir. Talvez aquilo fosse bom: quanto mais raiva tivesse, menos dor sentiria. Não era uma troca justa, mas sabia que seria inevitável não sentir aquilo pela próxima hora. Decidido a não ver mais a cena, ele voltou a caminhar em direção a sua casa. Para não bastar, Stacy era sua vizinha há pelo menos quatro anos, e há meses precisava aceitar que aquela mesma cena acontecia quase todos os dias. Mas dessa vez tudo era diferente.
Tudo era especialmente diferente.
Por sorte ela apenas percebeu sua aproximação quando Evan já estava girando a chave da porta, a qual fez barulho e chamou a atenção. Evan a observava com a visão periférica e notou o momento em que ela girou o rosto em sua direção, evidenciando a espera de seu cumprimento. Ele sabia que não deveria fazer aquilo, que era errado e que não o beneficiaria em absolutamente nada, apenas no contrário, mas pouco se importou e virou o rosto na direção de qualquer maneira. Embora a imagem da garota junto ao seu namorado o despertasse raiva e certo nojo, ele ignorou o fato, pois ainda era a Stacy quem estava ali - aquele tipo de cena não retirava a atração inerente à garota.
- Ei, Evan! – Ela acenou, necessitando retirar uma das mãos que envolviam o corpo do namorado para fazê-lo. – Como você está?
“Ora, levei uma surra que me deixou manco, vários hematomas e um golpe que  retirou litros de sangue do meu rosto. Bem, na verdade, fora isso, eu estou perfeitamente bem!”, poderia dizer a verdade, ser honesto apenas daquela vez, mas soaria patético. Ele estava aliviado por saber que seu estado decrépito não podia ser percebido por ela àquela distância. Era melhor dessa maneira, quanto menos alvoroço, melhor.
- Bem, bem. Obrigado. – Foi o que conseguiu dizer. Era notável que não conseguia dizer tantas coisas perto dela, embora ensaiasse todos os dias as prováveis conversas que teria e todos os prováveis lugares que se encontrariam. Mas nada nunca adiantava, e ainda assim, Evan ensaiava. Ele tentou acenar de volta, de um jeito extremamente atrapalhado, e notou o sorriso na face esbelta de Stacy surgir em reação àquilo. Sentia-se um idiota.
Ele abriu a porta e a empurrou, mas não percebeu que seu rosto ainda continuava na direção de Stacy. Aquilo desencadeou um sorriso desconcertado em seu rosto, sentindo as bochechas roxas – devido ao “afogamento na neve” que sofrera mais cedo – corarem, denunciando seu desconcerto. Ela estreitou os olhos na direção dele, de forma carinhosa e admiradora.
Evan poderia muito bem derreter, caso não fosse o clima extremamente frio que pairava a sua volta.
Foi quando imaginou que teria sido bem melhor ter agido de forma diferente e ter entrado em sua casa sem ao menos falar com a vizinha. O namorado dela observava a cena com irritação, seus olhos queimavam de raiva e a face assumia um tom escarlate, seu olhar fitava apenas e unicamente Evan como uma placa que dizia “eu vou te matar”. E... Bem, Evan não duvida nem um pouco disso.
O namorado da garota desmanchou as mãos que estavam na cintura dela e cruzou os braços sem que a própria namorada percebesse, e, desabrochando um sorriso diabólico e silencioso na face, observou Evan com mais intensidade antes de dizer:
- E aí, Pirralho? Como você está?
Evan engoliu em seco. Deu um sorriso forçado e acenou pela última vez, mas agora de forma disfarçada, indicando que o gesto fora intencionado para o casal.  Stacy lhe lançou uma piscadela amigável e gentil, e Evan entrou em casa. Sentia seu corpo tremer de medo, pois sabia que sua sentença de morte estava marcada: Chris Müller, que lhe dera uma surra mais cedo, agora estava ainda mais irado por Evan não ter obedecido às suas ordens e ter mantido uma conversa rápida, porém significativa com sua namorada, Stacy Watson.

Com o corpo totalmente imerso na banheira de sua mãe, projetando apenas o rosto para o lado de fora, Evan fitava o teto, inexpressivo. Repassava todos os acontecimentos das últimas horas, interligando-os com os fatos os dias anteriores e com os pesadelos “proféticos” que tivera sobre esses respectivos dias. Ao fundo, vindo do quarto, tocava God’s Gonna Cut You Down, de Johnny Cash. Por alguma razão desconhecida, Evan colocara a música para repetir, e deveria ser a décima vez que ela tocava.
Os pais não estavam em casa. Como todos os anos no natal, iam à casa dos avós de Evan, onde toda a família celebrava a festa tão estimada. Naquele ano, porém, Evan resolvera ficar em casa e apenas na noite de véspera de natal se reuniria com a família. Seus pais permitiram a decisão, deixando até um dos carros para que ele pudesse dirigir. Entretanto, uma semana que os planos de Evan realmente saíram da trilha: alguns pesadelos começaram a se repetir todas as noites, de formas tão reais e vívidas que chegavam a despertá-lo aos gritos abafados. Agiam como um memória ruim selada na sua cabeça, ele lembrava de cada detalhe, cada sensação e sentido aguçado dentro dos sonhos ruins.
No pesadelo, era sempre noite de natal, mas ele não estava na casa dos avós. Seus pais e ele estavam na própria casa, se preparando para a chegada natalina enquanto olhavam atentamente para o badalar dos últimos segundos no relógio. Aparentemente, a noite parecia fluir numa progressão normal de noite natalina, exceto pelos fatos que ocorriam a partir daí: surgia um estranho som no telhado, um baque abafado e linear. Todos sobre a mesa cruzaram olhares e seu pai levantou da cadeira, olhando para cima com mais cautela. Novamente o som se fez presente, dessa vez com mais força. Sua mãe disse algo que Evan não ouviu direito. Outro som surgiu, mas dessa vez mais estrondoso, como se um carro tivesse colidido com um muro, e, seguido do barulho, uma forte lufada de poeira saiu da chaminé, enchendo a sala de estar com aquilo, obrigando os três a levar as mãos aos olhos para se proteger. Foi nesse instante que outro som eclodiu, mais forte, mais alto e assustador: as paredes pareciam ter sido arrombadas como se um enorme touro as tivesse atravessado. Evan ouviu os destroços voarem para todos os lados, batendo em móveis e talheres, sobre a mesa, quebrando tudo o que havia em volta. Ele tentava se proteger, agora agachado no chão com os braços envolvendo o próprio corpo. A poeira ainda não havia baixado, pelo contrário, estava mais espessa e forte, fazendo-o se sentir no meio de uma tempestade de areia.
Então ouviu outro som. Aquele, no entanto, era o pior de todos, pois não era o de um mundo sendo destruído, nem o de sua casa sendo demolida ou o chão tremendo; eram gritos de terror e agonia. Eram os gritos de seus pais. Ele tentou segui-los, mas quanto mais o fazia, mais se distanciava e a poeira predominava no ambiente de um jeito assustador e proposital, como se existisse apenas para retardar a busca por seus pais. Ele corria em círculos, chamando com desespero, nada adiantava. Ele correu por vários minutos antes dos gritos cessarem, fazendo-o gritar mais forte, mais desesperadamente, mas não havia respostas ou sinais, além do fato de não poder enxergar um palmo à frente. Percebeu que, aos poucos, sua visão ia se distinguindo e a imagem da sala de jantar ia se materializando num lugar destruído e bagunçado, como se um pequeno furacão houvesse se arrastado pelo cômodo da casa com preguiça, mantendo-se sempre ali para fazer um estrago maior. A poeira na sala de jantar baixou e sumiu e seus pais não estavam lá.
A poeira baixou e tudo voltou a ser como antes, apesar da desordem. Para a sua surpresa, não havia toneladas de areia depositadas no chão, o que o espantou por um breve momento. Foi então que sentiu a anomalia inerente à tempestade e a todo o terror que se sucedera. Sua atenção foi voltada para seus pés e sobre o quê eles estavam pisando: uma poça de sangue. Uma poça de mais ou menos dois metros quadrados, fresca e quente, emanando um forte cheiro metálico. Evan estremeceu, sabia que o sangue era recente, mas a sensação elevou-se ao notar que a poça tinha um formato perfeitamente circular sob ele. Visivelmente feita com aquela intenção.
Um estalo surgiu, bem atrás dele, fazendo-o perceber que não estava sozinho naquele lugar. Tem alguém atrás de mim. Instantaneamente, um calafrio o percorreu a espinha, certamente um mau pressentimento acerca daquela presença - e quando Evan tinha maus pressentimentos, eles realmente eram... maus. Ouviu uma voz dentro da mente, sem razão aparente, conhecia a quem pertencia. O tom rouco e pausado de seu avô era inconfundível: “O que define um homem, garoto, não é o que ele faz, o quê ou como ele é. Apenas o que define um homem, moleque, é a sua coragem. Saiba disso, e use, ou vou ficar muito zangado com você”.
Sentindo as palavras do avô pairando a mente, Evan suspirou profundamente e sem hesitar girou o corpo para trás, sentindo seus pés deslizarem suavemente na poça de sangue. O que viu em seguida fez seus joelhos tremerem e sua boca ficar entreaberta.
O corpo de seu pai – apenas o dele, não conseguia encontrar o de sua mãe - estava no chão, imóvel e sem vida. Vários cortes se estendiam pela extensão de seu cadáver, deixando suas roupas rasgadas e a parte inferior do corpo despida, a expressão que havia em seu rosto sem vida era a de horror e desespero. Estava com o peito para cima, as pernas pareciam quebradas, já que se direcionavam a sentidos que jamais conseguiriam se locomover mesmo se fosse um artista de circo. Um dos braços estava estendido, enquanto o outro jazia sobre o tórax. Evan não podia acreditar no que enxergava. Tentou chorar, mas as lágrimas não lhe desciam o rosto, o choque era tão grande que o impedia de reagir.
Não era somente isso. Havia outros dois corpos, estavam mais perto da lareira. Um sobre o outro, também imóveis e sem vida, mas Evan não foi capaz de distinguir a quem pertenciam. Estavam escuros, submersos numa espécie de penumbra aterrorizante que apenas existia com o propósito de cobrir seus rostos. Ele tentou se aproximar, mas seus pés não saíram do lugar, o sangue o prendia ao chão como uma cola super potente. Tentou por mais alguns segundos e não obteve sucesso. Já estava exausto. Desnorteado. O tempo não transcorria de forma normal, alguns detalhes de sua casa não eram os mesmos, embora realmente estivesse em casa; o ar pesado doía em seus pulmões, a tonalidade de todas as coisas parecia assumir uma tonalidade âmbar, com exceção do sangue – é claro. Era realmente um sonho? Não. Era real demais. Havia medo o suficiente para desenhar um quadro realístico da vida material e concreta... Suficientemente assustador para superar os limites de um pesadelo qualquer. Era real, sim, sim. Era real.
Seus pensamentos foram cortados. Os ouvidos captaram uma risadinha baixa seguida de um som abafado, parecendo que alguém se debatia dentro de alguma caixa.
Ele lembrou então do estalo que ouvira e ergueu o rosto naquela direção – a mesma da qual viera a risada baixa. Quase não teve palavras para descrever o que viu em seguida: uma silhueta grande e gorda projetava-se na sua frente, com certeza era de um homem, ou de uma pessoa, mas não pôde distinguir mais que isso. Seja lá o que fosse, estava rindo baixo, movendo o corpo numa diversão sádica. Conseguiu visualizar as vestes do indivíduo: usava uma bota pesada e suja de lama, as roupas eram totalmente encardidas, de um vermelho sujo e extremamente escuro... Mas, mas aquela roupa... Evan a conhecia, ele a reconheceria em qualquer lugar do mundo, bem como qualquer pessoa no planeta inteiro a reconheceria. Era vermelha como um roupão, larga e havia um cinto com uma enorme fivela preta. Os botões da camisa prendiam com esforço a enorme barriga que ameaçava pular fora, e... A barba. A barba grande e imunda, também encardida, demonstrando alguns restos de alimento e um vermelho escarlate que lembrava sangue. Ele não teve coragem de erguer os olhos para ver os olhos daquilo, mas pôde perceber que, enquanto ele sorria, filetes de baba escorriam-no pela barba imunda.
Evan tentou sair, mas seus pés estavam presos. Então novamente ouviu o som de algo se debatendo, só notando o que era quando deslizou o olhar pelo braço direito do indivíduo até chegar num grande saco negro que ele segurava. Era um saco grande, parecia ser feito de couro e tinha alguns remendos manuais por toda a sua extensão, as linhas que havia ali também eram negras, mais parecendo cordas. A extremidade do saco era fechada com uma corrente aparentemente pesada e enferrujada. E havia algo ali dentro que se debatia e gemia como se a boca estivesse lacrada. Evan sentiu um frio tomar-lhe o estômago ao imaginar que a boca do que é que havia lá dentro, também estivesse costurada com linhas. Àquela altura, nada mais bizarro era impossível, mesmo a mais alta forma de tortura.
Tentou sair daquele lugar, puxando os pés para cima, segurando as pernas e as forçando para auxiliar na fuga, mas nada adiantava. Tentou o mesmo movimento por três vezes quando percebeu que aquela coisa que estava diante dele vinha se aproximando. Evan fechou os olhos e sentiu o indivíduo em sua frente, encarando-o de tão perto, que pôde sentir o cheiro azedo de suor e o metálico de sangue. Tentou rezar baixo, mas aquilo pareceu divertir o individuo – o qual Evan sabia muito bem o nome, mas se recusava a pensar. Sentiu a mão pegajosa deslizar-lhe o rosto, o individuo disse:
- Aqui está o presente que pediu, criança. Vamos, aceite, vou ficar muito magoado se você recusar. Muito, muito, muito magoado. HOHOHOHO.  
Seja lá o que estivesse naquele saco, reagiu às palavras do indivíduo soltando mais gemidos e se debatendo com mais força. Evan abriu apenas um dos olhos e fitou o saco, não fazia ideia do que havia ali dentro, tinha medo de descobrir.
- Vamos, vamos, criança. É o presente que você tanto quis, não recuse agora. ACEITE!
Evan sobressaltou-se com o susto. Seus pés se desprenderam da poça de sangue e seu corpo pendeu para trás. E, quando caiu no chão, saltou da cama imediatamente, acordando de tal pesadelo. Ele ficou ofegante por vários segundos, quando recuperou o fôlego, desceu correndo as escadas para constatar se sua casa não estava destruída, ou se não havia corpos estirados pelo chão da sala de estar. E tudo estava em perfeita arrumação, ele suspirou aliviado e voltou ao seu quarto, mas naquela noite não conseguiu pegar no sono novamente.
Nas noites seguintes, não mais conseguia dormir devido ao mesmo pesadelo que agora estava mais real, os corpos que antes ele não conseguia identificar, haviam se mostrado perfeitamente visíveis: Chris Müller e seu amigo, Mike. Já o saco... Bem, o indivíduo passara a desfrouxar as correntes e o abrira para que Evan pudesse ver, no entanto - por uma razão inexplicável e favorável -, sempre que o “presente” rolava para fora e tocava seus pés, também caindo na poça de sangue, ele fechava os olhos com esforço e conseguia acordar no mesmo instante. Esse mesmo pesadelo, além de sistemático, era evolutivo. Repetia-se todas as noites da mesma forma, com a mesma passagem de tempo, porém evoluía, sempre prosseguindo em novas cenas no dia seguinte. Era como assistir a um filme de terror todos os dias desde o início, pausa-lo no fim da noite e, no dia seguinte, assisti-lo outra vez desde o começo, chegar à cena de antes, assistir seu desenvolvimento e parar novamente, para saber o término no outro dia.
As outras vezes que pegava no sono, o pesadelo era outro: agora estava sozinho na sala de estar, há poucos segundos antes do natal quando o mesmo som no telhado ocorria e a mesma massa de poeira tomava sua casa. Ele conseguia correr e sair de casa, e quando o fazia deparava-se em ambientes totalmente diferentes, onde coisas de seu cotidiano aconteciam. O surpreendente era que, quando Evan acordava, os acontecimentos que ocorriam nesses breves pesadelos se concretizavam, numa espécie de premonição ou deva jú. Não, não... Eram premonições de fato, ele só teve mais certeza quando, naquele mesmo dia, tivera um pesadelo em que levava uma surra de Chris e de seu amigo, onde seu rosto sangrava e ele apagava, totalmente desorientado sobre a neve.
Outra confirmação daquilo que já sabia. As coisas vinham sendo reais. Os pesadelos da noite de natal, os corpos e a criatura pareciam ser o aviso do que ocorreria ao final de toda a aventura. Os outros rápidos pesadelos proféticos avisavam a Evan que todas suas experiências durante o sono não eram a consequências de uma exposição pesada aos filmes de terror ou drogas ilícitas, e sim um aviso prévio e fatalítico da realidade - realidade profetizada, premonições ou qualquer coisa do tipo.
Afundou a cabeça na água, desejando brevemente não ter forças para subir à superfície. Voltou à verdadeira realidade atual, abandonando os devaneios e lembranças sobre os pesadelos dos últimos dias. Saiu da banheira. Passou a toalha em volta do corpo e se dirigiu ao espelho, onde precisou passar a mão para desembaciá-lo e analisou o próprio rosto com cautela. Um hematoma se fazia presente no canto inferior esquerdo de sua boca, um corte de mais ou menos três centímetros cruzava seu nariz e outro ainda maior pulsava em seu supercílio, exatamente no ponto em que havia escorrido litros de sangue. Ele sorriu ironicamente, dando uma piscadela para si mesmo.
- Eu realmente espero que John McCLane esteja certo ao dizer que mulheres curtem cicatrizes. – Ergueu as sobrancelhas e abriu o armário do banheiro, pegando alguns curativos e uma caixa de aspirina. Assim que o fechou, viu seu rosto novamente diante do espelho e fitou a imagem por um longo tempo – Eu realmente espero que ela goste de cicatrizes, McCLane. Realmente espero...   

Com alguns curativos pelo rosto e revigorado de todas as dores que sentia, inclusive dos passos mancos, Evan saiu de casa com uma estranha disposição para pôr um fim em todas as coisas bizarras que vinham lhe acontecendo na última semana. Trancou a porta atrás de si de desceu os degraus da sacada da casa, passou pelo jardim e caminhou em direção à casa ao lado. Não foi tomado por nenhuma espécie de hesitação ou arrependimento, tampouco pelo medo que sempre lhe tomava quando imaginava o que Chris o faria caso se aproximasse de Stacy. Vidas dependiam daquela atitude, e como diria seu avô: “o que define um homem é sua coragem”.
 Evan já estava tocando a campainha da casa de Stacy. Tocou por duas vezes antes que alguém viesse atendê-lo, era a mãe dela.
- Oi, Evan! – Disse a mulher, tinha cabelos negros como os da filha, apesar de mais velha, era tão bonita quanto. Os traços em seu rosto não evidenciavam sinais de envelhecimento, e os olhos negros confundiam Evan, fazendo-o ter a certeza de que a própria Stacy era quem estava falando com ele.
- Olá, Sra. Watson, eu...
- Já sei, veio saber se a Stacy está? – Perguntou, a voz alegre e descontraída.
- Na mosca. – Ele sorriu.
- Bem, filho... Infelizmente ela não está. Mas quer deixar algum recado? Ou gostaria de entrar? Acabei de fazer uma torta de maçã deliciosa, aceite como seu presente de natal.
Ele sorriu novamente.
Tinha pontos a seu favor, já que sabia o quanto Marta Watson gostava dele e detestava o namorado da filha. Talvez fosse esse um dos motivos que tanto cultivavam o ódio de Chris por ele. Naquele momento Evan poderia sorrir vitorioso por esse pensamento, mas não estava com disposição para tal feito. Havia coisas mais importantes a serem feitas.
- Muito obrigado, Sra. Watson. Mas ficaria bem feliz se a senhora guardasse um pedaço do meu presente para amanhã à noite, o que acha?
- RáRá. Tudo bem, Evan. Eu guardo um pedaço para você. Mas, e quanto a Stacy? O que tem a falar com ela é muito importante?
- Sim, senhora. Muito importante. Acho que vou telefonar e...
- Não!
Evan arregalou os olhos, confuso com a reação de Marta.
- Hein?
- Não telefone para ela. Já que é tão importante, então porque você não vai vê-la, hum? – Havia um tom sugestivo em sua voz, de alguém que aproveita a oportunidade para colocar seus próprios planos em prática. – Ela está na casa de Chris, e eu agradeceria muito se você a trouxesse de volta. Se conseguir esse feito, faço uma torta de maçã gigante para você. O que acha? – Repetiu as palavras que ele usara.
Evan balançou a cabeça, rindo de um jeito divertido.
- Eu que agradeço, Sra. Watson. Vou tentar fazer isso, e não pense que não cobrarei a torta gigante.
- É claro! – Exclamou a mulher. Seus olhos negros se estreitaram ao notar certa anomalia no rosto do garoto - O que foi?
- Ah! Só um acidente. Quando meus pais não estão em casa, é um verdadeiro desastre. – Mentiu, e de forma tão convincente que Marta apenas assentiu com uma expressão de pena no rosto. 
Os dois sorriram e Evan se distanciou. Pegou o carro que os pais lhe deixaram. Pôs a chave na ignição e o ligou, sentindo o motor silencioso ganhar vida. Imediatamente saiu dali, dirigindo de um jeito um tanto urgente em direção à casa de Chris, e se deu conta da loucura que estava fazendo ao dirigir para a própria morte - deveria ser um grau muito acentuado de masoquismo. Fazia aquilo preocupado com vidas, mas vidas essas que pouco se importavam com ele e que sempre esperavam uma pequena oportunidade de humilhá-lo e massacrá-lo.
Apenas esse motivo não bastava para que aquele garoto de 18 anos se deixasse levar por um sentimento de vingança, capaz de fazê-lo assistir a morte já premeditada de dois pobres garotos que não evoluíram racionalmente. Ele olhou para o espelho retrovisor do carro e encarou seus olhos escuros, relembrou toda aquela loucura mais uma vez, e enfim o que ele tanto esperava com receio, aconteceu: uma pontada de culpa estraçalhou seu peito. Uma culpa angustiante que começou a massacrá-lo de um jeito incômodo, fazendo-o se sentir um lixo, quase como um criminoso que mata apenas por um instinto passageiro. Tinha plena consciência de que tudo aquilo era culpa sua, e no seu caso, o único crime que havia cometido fora o de desejar algo forte num momento puramente instintivo e emotivo.
Mas se eu soubesse que era verdade e não apenas uma simples história feita para assustar, eu jamais teria feito.
 Balançou a cabeça negativamente, se repreendendo pelo que tinha desejado. Logo afastou a autopunição e continuou dirigindo, com um mínimo e bem sucedido esforço de afastar aqueles pensamentos da cabeça. Evan poderia ter ligado o rádio do carro, poderia colocar um CD e ouvir uma de suas músicas preferidas, mas não o fez, já que bastou pensar em Stacy para que tudo o mais de estranho e aterrorizante abandonasse sua alma. Aquela imagem lhe trouxe paz e liberdade, uma calmaria se abateu dentro dele tal como após uma tormenta. Não restavam dúvidas sobre a influência que Stacy Watson exercia em Evan Dover. Por outro lado, ele mal fazia ideia de que o rosto que encontraria em seguida ia totalmente de encontro às expressões serenas e calmas que há pouco tinha imaginado acerca da garota.
Ele virou a esquina e visualizou a casa de Chris e, no gramado que levava à varanda, viu que os dois pareciam brigar. Stacy movia os braços para cima, embora não estivesse gritando. Ela notavelmente mantinha a voz num tom baixo, mas agressivo, de modo que apenas Chris pudesse ouvir. Já ele era o contrário: também gesticulava com as mãos – agressivamente, é claro -, os lábios demonstravam o quão forte era sua voz, e o quantos palavrões usava, fazendo Evan apertar as mãos no volante com uma força imensurável. Os nós dos dedos assumiram uma coloração esbranquiçada, semicerrou os olhos numa visível reação de cólera. Mas o carro que acabara de dobrar a esquina não intensificou sua velocidade, pelo contrário, desacelerou e continuou num ritmo lento, proporcionando uma visão mais concreta da briga que aquele casal travava – embora tal fato causasse sensações ruins dentro de Evan. Ele via que Chris ainda agia de um jeito rude e grosseiro com Stacy, também percebeu que quanto mais o fazia, as lágrimas no rosto dela desciam. Evan poderia continuar naquele ritmo, embargado em emoções de fúria e pena, comoção e dor, mas não continuou. O que viu em seguida, o fez pressionar o pé direito no acelerador, levando os pneus do carro a cantar no asfalto e deixar marcas.
Chris segurou-a pelos ombros e sacudiu com violência, fazendo-a tomar um susto tão grande a ponto de fazê-la parar de chorar, o que a manteve num estado passageiro de choque. Daquela vez, Evan não poderia deixar que a briga continuasse e, principalmente, que Chris a tratasse daquela forma.
Evan cogitou a possibilidade de esquecer todos os pesadelos que tivera, todas aquelas malditas premonições que lhe acometiam durante o sono e que retratavam com perfeição todos os acontecimentos. Ele teve a – extrema – vontade de não fazer nada a respeito e deixar Christian Müller ser ceifado por aquele maldito e imundo gordo. Era a forma mais eficiente de dar a Chris o que ele merecia.
Os dois se assustaram com o carro freando na frente do gramado, subindo naquela calçada e arrastando consigo as latas de lixo. Apenas tal susto fora capaz de trazer Stacy de volta do choque. Evan saiu imediatamente do carro sem ao menos retirar a chave da ignição, correu na direção dos dois. Chris soltou-a, estarrecido pela cena que acabara de presenciar, julgando ver um gnomo transformar-se em gigante.
Evan correu na direção de Stacy e a tomou-a entre os braços, deitando-lhe o rosto em seu ombro. Ela de imediato aceitou a atitude e passou os braços em volta do corpo do garoto com força, apertando-lhe para garantir que realmente estava segura. Toda a vontade que tinha era a de partir para cima dele, mas sabia o quanto aquilo não ajudaria em absolutamente nada. Por isso, depositou um beijo no topo da cabeça de Stacy e sussurrou palavras confortadoras, tentando dá-la a certeza de que tudo ficaria bem a partir dali.
Chris tentou avançar, e quando o fez, Evan soltou a garota e a colocou para trás de seu corpo de um jeito seguro, apontou o dedo indicador na direção do rosto do agressor. Não havia quase distância. O outro surpreso com a ação rápida de Evan.
- Se você se aproximar de mim – A voz de Evan saiu tão ameaçadora que mesmo Stacy se assustou. Falava pausada e furiosamente, revelando toda a raiva que ardia dentro de si. Sua voz saía tão forte que chegava a cuspir no rosto de Christian -, ou encostar um dedo nela novamente, eu juro que sequer vou precisar olhar na sua cara para acabar com a sua raça, Christian. Não preciso fazer muita coisa para acabar com você. Eu juro.
Chris se afastou. Talvez não estivesse tão assustado ou amedrontado, mas perplexo por ver o nerd assumir um perfil tão diferente. Chegava a ser engraçado. Os dois ainda trocaram olhares por um tempo. Daquela vez, quem estava por cima era a vitima que pela manhã estava no chão. Ele a levou para o carro, com passos cuidadosos e tratando-a com o máximo de cautela. Colocou-a no assento do carona e fechou a porta, dando a volta pelo carro e entrando em seguida. Nenhuma palavra foi dita em seguida, nenhuma pergunta ou explicação. Rapidamente saiu dali.
Ao longo do percurso, Stacy mostrava-se imersa nos próprios devaneios, com o rosto encostado na janela do carro. Nenhuma lágrima descia de seus olhos, mas ela parecia pensar em muitas coisas que levaram àquela briga. Era tudo o que Evan conseguia deduzir. Ele não a perguntou nada, sabia que precisava dar a ela um tempo sozinha, embora estivessem lado a lado. Continuou dirigindo até chegar ao destino, parando o carro na porta da casa dele, Evan observou a casa de Stacy na intenção de ter a certeza de que a mãe dela não estava na janela.
- Bem, eu vou ganhar uma torta e tanto. – Sussurrou para si mesmo.
- O que disse?  - Ela perguntou imediatamente.
Stacy não estava tão imersa assim, afinal.
Ele balançou a cabeça e lhe deu um sorriso confortador.
- Nós chegamos. Quer mesmo ir para casa?
- É claro, aonde mais eu iria? – Rebateu em seguida com a voz seca.
Percebeu o quão grosseira havia sido e ajeitou o corpo no assento, olhando Evan no fundo dos olhos com uma faísca de vergonha e culpa.
- Me desculpa, me desculpa. – Ela disse. – Eu não deveria ter falado assim com...
- Tudo bem, Stacy. – Ele sorriu, levando a mão ao rosto dela para retirar uma mexa de cabelo que havia na frente de seus olhos. Colocou-a atrás da orelha dela. – Não se preocupe. Tudo o que eu queria dizer é que... Sua mãe vai perceber que alguma coisa errada aconteceu. Sabe como mães são: enchem de perguntas e interrogatórios. Então pode ir até minha casa e lavar o rosto ou coisa parecida.
- É? – Perguntou, admirada pela forma como Evan a tratava. Sentia-se uma garotinha boba sendo cortejada por um homem mais velho. – Quero dizer... Não é uma boa idéia. Você está sozinho em casa, e não tenho plena certeza se meu vizinho é um serial killer.
Ele sorriu, mais pelo fato de saber que ela ainda nutria uma parcela de humor depois de tudo o que acontecera.
- Bem, peço que acredite em mim quando digo que estou tentando ser o mocinho nessa história.
- Mocinho. Sei. – Repetiu analítica a primeira palavra.
- Até tentativas de salvar vidas eu faço.
Ela gargalhou, o que surpreendeu Evan. Já não parecia tão abatida assim.
- Evan... Você já percebeu o quanto nossas mães têm razão quando nos alertam de algo?
Ele estranhou a pergunta. Estreitou os olhos na direção dela e balançou a cabeça, sinalizando sua dúvida.
- Bem, minha mãe sempre me alertou sobre o Chris. – Ela olhou para a rua diante deles. Parou de falar e ficou alguns segundos repassando seus pensamentos, soltando um sorrisinho por fim. – E sempre me alertou sobre você, também.
- Sobre mim?
- Sobre você.
- O que ela fala sobre mim?
- Tudo o que eu pude constatar agora. Você me salvou dele, sabe-se lá o que o Chris poderia ter feito comigo.
- Não pense nisso. O Chris é um...
- Idiota? – Stacy o interrompeu. – É, eu sei. Sempre soube, na verdade.
Ela saiu do carro e bateu a porta com cuidado para não fazer barulho. Evan fez o mesmo em seguida e notou que ela já estava na sua frente, com um olhar sem graça e agradecido. Ela o abraçou sem que Evan esperasse, aconchegou o rosto em seu ombro e pareceu chorar novamente. Ele apenas correspondeu ao abraço.
- Você sempre esteve ao meu lado... – Ela disse, sua voz saiu abafada.
- Claro. Somos vizinhos há quatro anos. – Brincou.
Ela sorriu e retirou o rosto do ombro dele, olhando com diversão. Evan reparou que algumas lágrimas ainda desciam do rosto dela.
- Eu havia esquecido que nerds levam as coisas no sentido literal. – Ela disse.
- Não sou nerd. – Evan resmungou.
Ele sabia do que Stacy falava. A relação dos dois até então poderia ser vista como uma simples amizade entre vizinhos. No colégio, Evan a ajudava com trabalhos e ela sempre pedia sua ajuda. Estudavam juntos e Stacy o ajudava com os “enigmas” de trigonometria, física e química, enquanto ele a ajudava com as provas de história e os trabalhos de filosofia. Não costumavam ficar juntos durante os intervalos, já que cada um tinha o seu grupo – e o dela, é claro, incluía Chris Müller e seu “capanga” – e os dois jamais se misturavam. Às vezes voltavam juntos para casa, e isso somente acontecia quando ela não voltava com as amigas ou não recebia a “inocente” carona de Chris. Não eram melhores amigos, não passavam a maior parte do tempo juntos e quase nunca trocavam conversas pela janela de suas casas, mas quando se encontravam, era diferente, como se um tempo prolongado não fosse necessário para construir o que havia entre os dois. A garota bonita e sensual, que não se gabava por isso; o falso nerd, reservado e quase sempre solitário: formavam uma dupla incrível, gostavam das mesmas bandas – embora ela odiasse o gosto de Evan por músicas depressivas que exaltavam a morte -, dos mesmos tipos de livros e... Só. De resto, eram completamente diferentes, mas totalmente complementares. Pertenciam a mundos distintos, porém nada disso os impedia de manter um contato amigável. Às vezes Evan extrapolava quando a admirava tanto, evidenciando o quão bobo e babão ficava, e Stacy gostava daquilo, dizia que a agradava, pois ele a contemplava de um jeito inocente e cauteloso. Um jeito protetor que Evan nutria por ela que, mesmo seus pais jamais nutriram com tanta intensidade.
O garoto tinha a certeza do quanto ela sabia de seus sentimentos, embora nenhum dos dois jamais tocasse no assunto. Ela não demonstrava reprovar os sentimentos de Evan, também gostava daquilo e uma parte sua – a qual ela tentava manter guardada, mas com fracasso – também sentia o mesmo em relação a ele.
- Então, o que me diz de entrar na casa do vizinho que pode ser um serial killer? – Ele sugeriu.
- Tem razão. Não quero minha mãe em minha cola perguntando o porquê de tudo isto. Ela já odeia o Chris suficientemente para quer matá-lo, mais um motivo não será tão bom. Valeu, Evan.
Ela se distanciou dele, apertando-lhe num último abraço antes de sair. Caminhou na direção da casa dele, e enquanto o fazia, Evan a observou delicadamente. Parecia não acreditar no que estava acontecendo, nunca tivera tão perto assim, bem como sua relação com ela nunca alcançara um nível íntimo e tão elevado como aquele. Todos esses fatores quase o fizeram esquecer o real motivo de ter saído de casa à procura dela. Subitamente, lembrou o quão determinado saíra para conversar com Stacy e conta-la toda a – verdadeira - história. Mal percebeu o quanto aquilo o desanimou, voltando-o a lembrar quem realmente era: o falso nerd e culpado por tudo o que estava acontecendo e o que certamente viria a acontecer.
Stacy virou o corpo e fez uma expressão de confusão ao vê-lo ainda ali, parado.
- Você não vem? – Perguntou, acenando para que viesse em sua direção.
Evan assentiu e a seguiu. Mas não a olhou diretamente nos olhos, manteve a cabeça baixa durante aquele percurso. Ao parar diante da porta, suspirou profundamente e se direcionou à garota.
- Stacy, Você confia em mim?
- O quê? – Ela ficou ainda mais confusa.
Evan pestanejou e, totalmente hesitante, fitou os olhos escuros dele.
- Não liga, é só uma pergunta. Você confia em mim?
Ela não entendeu a intenção de Evan, mas confirmou veementemente, soltando um sorriso sem graça em seguida. Em resposta, Evan sorriu um tanto aliviado, mas não livre da tensão que de repente havia surgido em seu rosto.
Ótimo, eu vou precisar dela para depois, pensou consigo mesmo, sentindo uma forte palpitação no peito.
Pôs a chave na fechadura e a girou, empurrando a porta.
- Seja bem-vinda, Milady. – Brincou, intencionando a tonalidade cafona.
Stacy sempre sorria com as brincadeiras de Evan, daquela vez não foi diferente. Aos poucos, tudo ia mudando e de um jeito surpreendentemente assustador, ela ia se aproximando cada vez mais do garoto, o que tornava as coisas ainda mais difíceis para ele, já que todos os fatos que haviam transcorrido nos últimos dias o confundiam ainda mais, fazendo-o pensar se realmente era verdade ou se era apenas o acaso.
Não importa. Eu só preciso contar a verdade à ela. Espero que acredite.
A incerteza não o deixava e apenas aumentaria a partir do momento em que Stacy entrara em sua casa. A partir daquele momento, era tudo ou nada.
O nerd tinha apenas dois destinos: se valer das palavras de Stacy e ter a certeza de que ela confiaria e acreditaria no que ele tinha a dizer; ou – a questão que mais o deixava preocupado, com as mãos trêmulas e o coração acelerado – perder tudo o que um dia conseguiram construir, mesmo que tenha sido a coisa mais singela do mundo.
Desejem-me sorte.

Evan folheava aquele livro incessantemente enquanto esperava Stacy sair do banheiro. Já o tinha lido uma vez, há alguns dias tentava ler pela segunda, mas agora passava os olhos por cada linha de cada página à procura de algo que respondesse suas perguntas. Ele sentia que na primeira vez que fizera aquilo, tinha deixado passar alguma coisa – justificado pelo fato de que ele não fazia a menor ideia das consequências que o livro viria acarretar. Seja lá qual fosse o detalhe ou brecha que ofereceria uma saída aos seus dilemas, Evan imaginava que estava cravado em alguma daquelas páginas, sob um código secreto ou uma charada maluca e filosófica. De alguma forma, havia um pressentimento intuitivo piscando dentro dele, dizendo que um detalhe havia sido pulado e que faria toda a diferença. Ele só precisava encontrar.
Caminhava de um lado para o outro diante da porta do banheiro, mas ansiava para que Stacy demorasse um pouco mais. Enquanto folheava o livro, uma parte de sua consciência tentava reunir toda a coragem existente nele para dizer o que tinha a ser dito; ele a prenderia em sua casa durante o tempo que fosse necessário para fazê-la escutar cada detalhe da história. Se o começo dela já era louco e idiota, Stacy não aguentaria ouvir o resto e cairia fora dali. Por isso Evan só tinha uma chance. Suas tentativas anteriores não saíram tão vitoriosas: a última vez que tentara dizer a verdade, acabou levando uma surra tão grande que as marcas ainda ardiam e doíam em todo seu corpo. Sabia o modo errado, tentaria corrigi-lo e passá-lo a Stacy, rezando para que o gênio menos hiperativo dela (comparado ao de Chris e de Mike) permitisse que ele chegasse ao final.
Relembrou das aspirinas, a julgar pelas dores e os hematomas pelo corpo. Levou a mão ao bolso e retirou duas pílulas do pote, jogou duas delas na boca e mastigou, sinceramente desejando que fossem calmantes. 
- Uau. Imagino que a dor realmente seja grande. – Stacy estava recostada na lateral da porta com os braços cruzados. Os olhos, de um perfeito cinismo fitando Evan. O rosto parecia melhor, livre das marcas das lágrimas.
Evan sorriu sem jeito e escondeu as aspirinas no bolso. Fechou o livro e o jogou sobre a cama.
- Nada que não se resolva. – Respondeu.
Stacy ergueu as sobrancelhas, compadecida e empenhada a conversar sobre o assunto ou tirar algo de Evan, mas ele fez questão de dar o assunto como encerrado. Ela apenas acenou e desencostou da porta, agora passeando pelo quarto do garoto.
Ela continuava a observar o ambiente com curiosidade, sem discrição. Começou a caminhar pelo cômodo, analisando cada objeto e acessório que havia ali, soltando murmurinhos e fazendo comentários divertidos quando encontrava algo estranho, interessante ou familiar. Comentava sobre como sua infância tinha sido ou o que daria para ter alguns brinquedos guardados ou espalhados pelo seu quarto, assim como ele. A cada passo que ela dava por seu quarto, Evan sentia-se afogar num oceano de vergonha, já que era Stacy quem estava ali analisando cada detalhe numa minuciosidade extrema. Não era a primeira vez que uma garota estivera em seu quarto - e quando isso aconteceu, não houve tempo exclusivo para a apreciação de objetos, o que tornavam as coisas totalmente diferentes da ocasião atual.
O modo como analisava o quarto, desinibida e à vontade, talvez deixassem o garoto embaraçado. De fato isso acontecia, mas a ideia de tê-la mais próxima, a um nível que nunca estive antes, compensava qualquer embaraço medíocre e adolescente. Stacy tocava com os olhos o quarto como um virgem tocando o corpo de uma mulher madura, deslizando as mãos e apreciando cada curva, de forma curiosa e nada discreta. Os olhos talvez brilhassem, mas não chegava a tanto. A garota andava em círculos, admirada com o incrível número de livros na estante e os pôsteres de bandas conceituadas atravessadas pelas paredes. Ela escavou mais a fundo, olhando os cds e dvds, mesmo as revistas científicas e de curiosidades, edições de assombrações, teorias conspiratórias e sobre ufologia. Era engraçado, no sentindo irônico. Garotas (pelo menos a maioria que Evan conhecia) jamais se interessariam tanto quanto Stacy aparentava. Havia duas linhas a serem deduzidas: a garota estava admirada com o grande leque de coleções e objetos pertencentes a ele ou, no pior dos casos, ela olhava a tudo com um pensamento secreto que berrava “tanta loucura e coisas de idiotas, esse garoto é um panaca imbecil”.
Sua curiosidade foi amplamente aumentada quando os olhos pousaram sobre um objeto de cor amarelo, ilustrado por listras pretas. Havia uma numeração ao seu lado. Tinha formato comprido e quadrado, uma das extremidades era linear, enquanto a outra exibia uma ligeira concavidade voltada para dentro, com alguns pequenos pinos metálicos para fora, feito dentes. Ao seu lado, a forma de encaixe de dedos estava bem delineadas, indicando de que forma o objeto deveria ser usada e sustentado nas mãos. Um pequeno botão ficava na altura do provável posicionamento do dedão da mão. Lembrava o cartucho de munições de um revólver, mas apesar de também ser uma arma, era bem menos letal. Ele esticou a mão, mas logo em seguida se deteve. Não sabia como lidar com o tipo de objeto, tampouco arriscaria.
- O que é isso? – Ela perguntou, embora soubesse a resposta.
- Uma arma de choque. – Respondeu sem graça –
- Por que você tem uma coisa dessas? – Era a primeira vez que via, tão de perto, uma arma de choque real. As outras experiências não transcendiam os filmes.
- Sei lá, emergência. Foi um presente do meu avô. – Ele deu de ombros, tentando ao máximo abstrai-la do assunto – Relaxa, eu nunca precisei usar.
- Ah, sim. Tá.
Jamais imaginaria que Evan tivesse algo assim entre os pertences pessoais.
Afastou a atenção da pequena, mas poderosa arma. Resolveu então sair do clima tenso e analisar mais atentamente aos outros itens, avaliando com cuidado e desejando não encontrar outro presente de família tão perigoso. Havia um troféu um pouco distante da arma de choque. Ela abriu um sorriso para ignorar e esquecer a tensão de meio minuto atrás e agarrou o novo objeto de análise entre os dedos. Caminhou até a janela, o troféu tinha o formato de guitarra, talhado num brilho prateado e bem polido. Sentou-se na janela de costas para a rua e brincou com a vitória máxima que Evan fora premiado. Jamais imaginaria – também – que Evan tocava guitarra, muito menos recordava de escutá-lo tocando. Seus olhos eram voltados totalmente ao troféu, o sorriso despontando pelo rosto.
- Eu já sabia, mas ainda tinha minhas dúvidas. – Ela começou com a voz divertida – Você realmente é um nerd e tanto. – Ergueu as sobrancelhas e esticou a mão para cima, mantendo o troféu no alto.
- Prestar atenção nas aulas, participar delas e bancar o estilo solitário não me define um nerd. – Frisou, tentando ao máximo renegar o título. Aproximou-se dela com passos lentos.
- Me ajudar com trabalhos de história e filosofia, me fazendo tirar a pontuação máxima... Hm, isso te define um nerd.
Ele se aproximou o suficiente para olhá-la diretamente nos olhos. Manteve uma distância respeitosa entre eles e pegou o troféu com cuidado, mas com agilidade, assustando-a com o golpe surpresa. Stacy não questionou, mas deixou que o olhar parasse na direção dos olhos verdes de Evan e não saiu dali por segundo algum.
- Eu posso perguntar o que houve entre você e o Chris?
- Achei que não fosse perguntar. – Olhou para o lado e fitou um ponto qualquer do lado de fora. – As coisas não estavam tão bem entre nós. Sabe como é, o Christian é o tipo de cara que pensa em si próprio e na imagem que passa aos outros, ele só estava comigo por esse motivo. – Ela falava com tanta naturalidade como se aquilo fosse algo tão comum e que passava despercebido. Todas as mesmas conclusões que o garoto sempre construíra em relação a Chris, já estavam perfeitamente consolidadas e construídas dentro de Stacy.
Evan engoliu em seco, mal acreditando no que acabara de escutar.
- Então porque estava com ele já que sabia disso?
- Porque eu estava carente. – Ela soltou uma gargalhada divertida, admirando a reação estarrecida de Evan. – Brincadeira. Eu não faço a mínima ideia, não enxerguei isso imediatamente, Evan. Você nunca se dá contas das besteiras que faz.
Nunca”, ele completou com uma nota mental, concordando profundamente com ela. Aliás, havia um motivo tão vívido quanto a memória do sangue em seus pesadelos para que compactuasse com as palavras de Stacy.
- Ainda não justifica o que rolou hoje.
Ela assentiu e o encarou novamente.
- Por que não ouvimos os conselhos de nossas mães? Elas sempre sabem o que dizem, acredite em mim, Evan. Ela sempre me alertou sobre o Chris, mas eu pouco me importava. Como eu disse, as coisas já estavam estranhas entre nós dois, e ele só precisou de um único motivo para colocar outra no meu lugar. Eu não o amo, nem gosto dele a ponto de derramar alguma lágrima ao pensar em perdê-lo. Na verdade... O que me fez chorar foram as coisas que escutei, como se a culpa fosse minha por todo o egoísmo que aquele babaca tem consigo.
Ela saiu da janela e sorriu na direção de Evan, que permanecia meio estarrecido com tudo o que acabara de ouvir. Se soubesse que a verdade era apenas aquela e que a garota não gostava tanto de Chris como ele achava, ele não se torturaria tanto. Achava que Stacy realmente gostava do cara, o que automaticamente tornava as coisas mais difíceis para Evan. No fim, um caminho estava aberto, a oportunidade para a chance que ele sempre almejara. Por outro lado... Ainda existia a parte incômoda que ele precisaria enfrentar.
- Stacy... Eu preciso que você saiba de uma...
Evan não terminou a frase.
Notou que ela segurava o livro que há pouco estava lendo. Não pôde fazer muito, já que o rosto da garota já se contorcia em expressões misturadas de espanto e desaprovação, sem mencionar o aparente arrepio que percorreu o corpo dela quando mexeu discretamente os ombros. Balançava a cabeça negativamente.
- Você lê esse tipo de coisa? – Ela perguntou, estendendo o livro no alto.
- Não. Só estava... Fazendo... Uma pesquisa.
- Isso não é pesquisa, Evan. Isso é... Loucura! – Então ela sorriu sarcasticamente. Sabia que aquele livro não passava de uma besteira, e por notar que Evan acreditava naquelas coisas, não controlou a risada. – Precisa pesquisar “as formas de aprender matemática”, é o tipo de livro perfeito para você.
Ele caminhou na direção dela e arrancou-lhe o livro das mãos. Seu rosto não demonstrava sinais de diversão, o que a espantou. Ele caminhou em círculos, para trás e para frente, por todos os cantos do quarto, batia o livro na própria testa enquanto parecia pensar profundamente em algo. Também sussurrava palavras que Stacy não conseguia entender. Quanto mais ele fazia isso, mais o medo dela aumentava.
Evan parou e olhou em sua direção.
- Eu preciso que você confie em mim. Preciso que você ouça tudo o que tenho a dizer, detalhe por detalhe...
- Sobre isso? – Ela apontou para o livro.
- Aham. Sobre isto.
- Você está brincando comigo, não é?
Ele não respondeu nada, continuou olhando sério nos olhos dela. Stacy tentou rir outra vez, abanando a mão e mandando o garoto parar com a brincadeira. Fora engraçada, mas chegava a ser bizarra demais. Não era o tipo de assunto que ela apreciasse, já que fazia o tipo “cultuar Deus e ir à igreja todos os Domingos, embora fosse um saco”. Não nutria obsessões paranoicas sobre teorias de conspiração ou assuntos ocultos. Evan era um autêntico nerd, era normal que gostasse dessas coisas. Mas a brincadeira não a agradava tanto e por isso pediu outra vez que ele parasse.
O garoto permaneceu sério, sem expressar qualquer sinal de que fosse uma pegadinha.
Ela sorriu outra vez, agora nervosa e temerosa.
- E-Eu preciso ir, Evan. Minha mãe está me esperando, e...
- Stacy! Por favor, fique.
O desespero de Stacy baseava-se na gravidade com que Evan acreditava no livro. Além de aparentar uma imagem obscura e macabra, havia algo que envolvia aquele artefato – sim, porque mais parecia uma relíquia roubada de um museu de obscenidades religiosas. Apenas um título mal feito talhava a capa, na parte de trás uma inscrição, aparentemente feita à mão, dizia em um único parágrafo instruções de uso e alerta. A princípio, a garota não quis acreditar naquilo, tampouco levar a sério, era assustador demais. Tudo o que desejava era apagar a memória da experiência e da sensação ruim que tivera ao tocar aquela monstruosidade. Cogitou a possibilidade de estar exagerando e levando o medo a sério demais, no entanto, não havia como não se assustar. Sem mencionar, é claro, o olhar intimista e imparcial de Evan. Ele falava sério. A perda maior não fora o término do namoro com Chris, e sim a descoberta da verdadeira pessoa por trás daquele rosto que tanto a acalmava.
Sentia medo. Sentia-se em perigo.
Correu em direção à porta do quarto, mas foi impedida quando a mão dele segurou a sua de um jeito leve.
- Eu sei o quanto isso parece loucura, não... Eu sei o quanto isso é uma loucura, mas, por favor, tudo o que peço são alguns minutos, me escuta e aí vai entender.
- Você é louco, Evan. Precisa de ajuda. Está realmente achando que uma coisa dessas é verdade? E... E... onde arrumou esse livro? Isso é...
- Comprei pela internet. – Ele soltou a mão dela e ergueu as suas para o alto, indicando que não faria nada.
Em passos contados foi até a estante e pegou a arma de choque, sem retirar o olhar da garota. Mantinha-se na defensiva. A atitude assustou Stacy, mas ele sinalizou outra vez que nada faria e, gesticulando com calma, arremessou a arma sobre a cama. Afastou-se e indicou com o olhar.
A garota engoliu em seco, hesitante. Revezou os olhos entre a porta, a cama, e o aparentemente louco vizinho. Mas o caminho não estava bloqueado, tudo o que Evan tinha era um livro grotesco nas mãos e, a arma de choque estava sobre a cama, perto demais dela. O fato de o garoto vir a ser um psicopata ainda a assustava, por outro lado algo ainda martelava na cabeça dela, dizendo para esperar mais um pouco, segurar aquela arma e controlá-lo. Sim. Talvez fosse necessário apenas acalmar a cabeça em tormenta e esquizofrênica, aproveitar a oportunidade certa (ao fingir se convencer) e dar o fora dali.
Ele insistiu na indicação da arma, continuando com as mãos estendidas.
- Eu não vou fazer nada. – Garantiu.
- Foda-se! Você pirou... – Soltou, espontânea. Não melaria o plano ou talvez não fosse boa em estratégias. Estava perdida e os pensamentos se esfarelavam assim que ganhavam forma. Ainda era o Evan Dover que sempre admirara, este era o bloqueio que a impedia de enxergar a situação com clareza. A razão pulsava de um lado e o afeto de outro. - O que diabos quer que eu faça, Evan?
- To tentando dizer que não pirei. Não estou ficando louco.
- Ah, sério? Juro que não é isso o que está me parecendo.
Ele suspirou, bufando e respirando fundo. Fechou os olhos, suplicante.
- Eu só peço alguns minutos, escute o que eu tenho a dizer e depois... – Gesticulou com as mãos na direção da porta, temeroso – Se quiser, saia correndo porta fora. Você sabe o caminho de casa, eu acho. – Tentou brincar. Stacy não riu. Continuou: - Eu sei que não é simples; sei o quanto é estranho eu mudar de assunto e começar a falar sobre esse livro...
- Essa coisa. – Ela o corrigiu. Observou de relance o livro e se afastou na cama.
- Essa coisa.­ – Ergueu o objeto em questão, tomado por um breve momento pelos traços sombrios do livro. Seus olhos verdes mostravam algo contraditório a todas as conclusões de Stacy. Havia sinceridade, uma faísca de medo e súplica. Ele jogou o livro no chão e baixou o rosto, movendo a cabeça de um lado para o outro. Manteve as mãos para o alto. – Pegue a arma. É a garantia que estou dando a você, caso comece a pensar que farei alguma besteira.
- Você quer que eu te ataque?
- Quero que se sinta segura, droga.
- Como pode ter tanta confiança em mim? Eu posso... Fugir ou te atacar com isso a qualquer momento.
- Eu sei. Mas você não vai fazer isso. Você não é o Chris, muito menos o Mike. – Passou os dedos sobre os hematomas e o ferimento no rosto, mostrando o que acontecera na última tentativa. – Você ao menos vai tentar me ouvir, ao contrário daqueles dois idiotas.
Stacy estreitou os olhos, entendendo agora o real motivo. Ela assentiu, foi até a cama e pegou a arma, mediu o peso do objeto entre as mãos e apertou o botão que havia ao lado. Um fraco zumbido saiu - plenamente carregada e funcionando. Deu-se conta da séria “confiança” que Evan depositava nela, afinal a conversa sobre “dar uma garantia” era verídica. A arma de choque já estava em sua mão, e ela sabia como usá-la. Moveu o rosto, mandando-o sentar-se na janela.
Ele a obedeceu com alívio nos olhos.
A garota se afastou da cama, mantendo a defensiva. A disposição para ouvir o garoto de fato existia, mas ela não arriscaria tanto, já que ainda julgava que Evan havia enlouquecido numa paranoia sobre ocultismo e desejo ao acreditar em um livro que falava a respeito desses assuntos: ele entregava promessas inquebráveis a troco de pedidos realizados, sem citar consequências ou preços altos. Lembrava uma distribuição gratuita de carros de luxo, sem ao menos cobrar o menor dos impostos. Muito por nada, a ponto de ser profundamente questionável.
Por todas essas razões ela se dispunha a ouvir a loucura de Evan, mas apenas como artifício para acalmá-lo e, posteriormente, buscar ajuda – não antes de correr feito uma louca para casa e para a segurança da mãe. Pôs-se de pé e voltou à porta, com a arma emitindo um zumbido agudo.
Ela hesitou, conseguindo por fim abrir a boca:
- Me dê apenas um motivo para eu não sair correndo pela porta, nesse exato momento.
Evan passou as mãos pelo rosto e apertou o cabelo entre os dedos, balançou a cabeça e olhou-a profundamente.
- Porque as vida do meu pai, de Chris e de Mike estão em risco.
- O quê? – Ela perguntou, incrédula com o que acabara de ouvir.
- Pessoas vão morrer, Stacy. E eu preciso da sua ajuda.

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