26 de novembro de 2012

Capítulo II, Here Comes Santa Claus




Red From Christmas, Capítulo II, Here Comes Santa Claus

A arma ainda estava firmemente posta na mão direita de Stacy. Um fraco zumbido saía dela, indicando que estava ligada e poderia ser usada a qualquer momento. No entanto, isso não assustava Evan de forma alguma, já que no fundo ele sabia que a garota nutria uma pequena disposição para ouvir o que ele tinha a dizer e, caso este não fosse o caso, a distância que estavam daria tempo suficiente para ele fugir.
Eu não sou um louco, afinal.
Estavam em silêncio, ele perdurava há  longos minutos. Os olhos de Stacy não paravam, pulavam de um canto ao outro enquanto repassava cada palavra de Evan por sua cabeça. Ele a tinha dito cada detalhe sobre os pesadelos que tivera nos dias anteriores, ela conseguia ver – sem explicação aparente, como uma ligação existente entre os dois capaz de fazê-la enxergar através dos olhos dele – tudo o que havia narrado com perfeição: cada gota de sangue esparramada no chão, todos os três corpos ceifados e a sala de estar da casa dele, com o indivíduo diante de Evan como uma sentença iminente de morte.
Alheio a isso, o fato de estar intrinsecamente ligada a Evan a assustava bastante. Chegou a cogitar se aquilo apenas não era fruto do afeto que mantinha por ele, pela admiração e identificação. Talvez fosse isso que não a fez correr e que afastava o medo que deveria sentir por toda a história, mantendo-a ali, diante dele, ouvindo a tudo com espanto e incredulidade – mesmo que o bom senso fosse teimoso para ficar por muito tempo, pois havia grande parte da garota que ansiava em acreditar nele. No mais, Stacy apenas lutava contra a própria razão e a ideia em admitir que o garoto pelo qual - tinha quase certeza – sentia-se atraída, estava afogado em uma loucura fantasiosa que o levara a um extremo preocupante.

“Um monstro, entrando pela chaminé de sua casa e atacando um membro de sua família e outras duas pessoas que você tanto odeia, trazendo-lhe um “presente” vivo e misterioso, dentro de um saco de couro...”. Tudo o que restava era uma análise de Evan, sobre a consequência de sentimentos reprimidos contra pessoas que o atormentam de formas físicas e/ou psicológicas.
- Stacy. Você... – Evan quebrou o silêncio, embora sua voz delatasse toda a grandiosidade da hesitação que havia nele.
Ela não respondeu. Apenas sinalizou com mais ênfase para que ele parasse, usando a mão que estava livre. Seus olhos atormentados e confusos o fitavam com intensidade, com uma espécie de terror e medo.
Ela suspirou fundo e o fitou com clemência.
- Evan... São apenas pesadelos. Eu sei que são perturbadores. Por Deus! Até eu mesma fiquei assustada com tudo isso, por que você não ficaria? Eu te entendo, e muito perfeitamente. Mas você precisa enxergar a verdade: são apenas pesadelos, pesadelos horrorosos e persistentes, muito provavelmente foram causados pelo livro que você leu. Não precisa ficar tão conturbado assim, se você passar a enxergar que foram apenas pesadelos e nada mais que isso, então...
- Não. – Ele a interrompeu num tom fraco.
Evan estava convencido do contrário, disso ela não poderia duvidar. A calma com que ele falou, o jeito como a olhava – atordoado, com medo e aparentemente racional, o que contrastava com a essência das palavras. Stacy percebia que ainda havia o garoto que ela sempre conheceu por trás daqueles olhos. Toda a essência verdadeira e sinceridade ainda estavam ali, totalmente vivas sob a aparente loucura que o tomava.
Ela ficava cada vez mais confusa sobre o quê acreditar. Desejava do fundo de toda a sua alma confiar em cada palavra proferida por aquele Evan que tanto a fazia bem. Por isso utilizava o pouco de razão que lhe restava para tentar convencê-la do contrário.
- Stacy...
- Hum?
- Lembra quando mencionei que os pesadelos eram meio que... Proféticos?
- Também quer que eu acredite que Deus anda conversando com você por e-mails?
Ela riu. Stacy ficava linda sob aquelas sobrancelhas grossas e olhos penetrantes. Demasiadamente linda.
O Evan que ela conhecia ainda estava ali. E sem um motivo definido, ele também sorriu.
- Desculpe. – Ela disse. – O que você iria dizer sobre esses tais pesadelos proféticos?
- Eu acho que não comecei direito com você.
- Como assim?
- Eu não comecei desde o início ou como e nem o porquê desses pesadelos terem começado.
Ela ergueu as sobrancelhas.
- Quer dizer agora que tudo isso teve um motivo?
- Aham. – respondeu derrotado.
Stacy balançou a cabeça como alguém que tenta se recuperar de um tombo. Pareceu cogitar por alguns segundos sabe-se lá o quê, apertou um botão da arma que a fez zumbir mais forte e encaminhou-se até a cama, sentando-se na beira dela. Posicionou a arma com a mão esticada na direção de Evan e fitou-o mais profundamente.
Ele notou um traço de confiança nos olhos da garota e sentiu uma pequena faísca de alegria surgir, já que ela parecia realmente dar um voto de confiança.
- Muito bem, Evan... Se você quer a minha ajuda, minha confiança e também impedir a suposta “morte” de algumas pessoas, sugiro que comece a contar essa história desde o início. Você precisa de mim? – Levantou os ombros e os deixou cair, fatídica e irônica – Ótimo! Porque eu preciso confiar em você – apontou a arma na direção dele, determinada -, caso não queira levar algumas centenas volts bem no meio do peito. Vai, começa.
Ele assentiu, desanimado.
- Eu tinha acabado de receber a nota do teste de matemática: um “D” bem grande, rabiscado em vermelho parecendo sangue - às vezes acho que o Sr. Kevinson faz isso de propósito. Não que os outros dias também não tenham sido uma merda, mas aquele em especial, foi ainda pior. Algumas horas antes, Chris me encontrou no banheiro. Você já sabe o que rolou: algumas sessões de pancadaria gratuita. Não que eu também não esteja acostumado, mas tudo coincidiu de rolar em uma só manhã. Tive que voltar para casa com a nota entalada na garganta e dores pelo corpo. Mal esperei o sinal tocar pra sair da sala correndo; precisei ignorar as várias propostas que meu pai fez de me buscar, mas eu não queria aquilo. Por alguma razão, tudo o que poderia me acalmar seriam algumas horas sozinho e longe de todo aquele maldito pesadelo que se repetia todos os santos dias. Voltei a pé, e sinceramente acho que contornei alguns quarteirões e alonguei o caminho de volta, tudo para que Chris e Mike não me vissem por aí. Tive sorte – poucas vezes isso me acontece. Cheguei em casa e sequer olhei na cara da minha mãe, nada pessoal, sabe? Só não queria ter de encará-la e dizer que o dia tinha sido ótimo ou admitir meu frequente bom desempenho em matemática.
“Juro que tentei dormir, porque fechar os olhos fingir que nada acontecia sempre é a melhor opção; não ter a responsabilidade de sair da cama ou acordar: eu precisava disso, pregar os olhos e tentar sonhar. Mas a sorte já não estava comigo. Talvez não tenha colocado merda alguma no estômago nesse dia, como se a falta de sono também tivesse se transformado na falta de fome. Revirei pela cama. Pensei e gastei meus neurônios. Essa é a pior das atividades, sabia? Pensar demais nunca é benéfico, vai por mim. Mas não importava o que eu pensava, os passos da minha cabeça só tomavam um rumo. Eram como a porra de replays sobre tudo que acontecera naquele dia. Lembrava do teste e de como poderia resolver aquelas contas que mais pareciam um dialeto antigo – aliás, porque aquela merda é sempre tão fácil aos professores? E acima de tudo, eu repassava a surra que levara de Chris, imaginando milhares de maneiras de ter escapado ou revidado. – Ele suspirou, reunindo ar para continuar falando. Lembrava desse dia em específico com extremo realismo, os sentimentos pareciam voltar a tomá-lo. Sorriu em direção à ela e sorriu, derrotado – Não me julgue por isso, palavras otimista podem funcionar com muitos, menos comigo. É um saco ficar assim e... Sei lá”.
- Relaxa. – Ela respondeu. A voz era compreensiva e demonstrava sinais de admiração. Talvez o entendesse naquele sentido – Eu posso ignorar seu lado depressivo, não é algo que eu repudie tanto. Confie em mim.
- Err... O-Obrigado.
- Só continua.
- Eu queria mudar aquilo. Quantas vezes você já se olhou no espelho e tentou mudar o que vê? Mas não o lado de fora, e sim o de dentro. – Respirou fundo e chegou a rir, irônico. Reassumiu um novo tom, deixando a auto piedade para trás – Desisti da fracassada ideia de dormir. Sentei na frente do computador e fiquei longas horas sem fazer nada, com os pensamentos ainda em mente quando encontrei o livro.
- Este livro? – Ela perguntou desdenhosa, apontando na direção do livro que estava sobre a cama.
- Sim, esse livro. – Evan assentiu. – O site era confiável e o título do livro me chamou a atenção. Olha só pra isso. – Indicou com o queixo, apontando para o livro. Por um tempo os dois analisaram o objeto: era uma coisa feia e bruta, sem o menor traço de delicadeza ou refinação. Era grosso em função da textura e grossura das páginas amareladas, fedia a mofo e mais alguma coisa desagradável. Havia apenas um título estranho (em outro idioma), sem menções a autores ou editoras - Qual é, Stacy, vai me dizer que de vez em quando você não se sente atraída por um lance misterioso e bizarro?
- É. Tem razão. A propósito, ainda estou aqui diante de você, não é? – Pestanejou e sorriu, embora houvesse um medo escondido atrás da boa aparência.
Evan, porém, não entendeu o que ela quis dizer com aquilo e ignorou com relutância após ela gesticular para que continuasse.
- O.K. Resolvi comprar o livro. E dois dias depois ele chegou. Imediatamente eu o li, e preciso lhe confessar: a história é fantástica. Quero dizer, apesar de passar de uma lenda de um folclore sensacional, eu não podia deixar de ler aquilo, era irrefutavelmente interessante e envolvente, e contrastava totalmente com tudo o que acreditamos hoje em dia. Mas, como tudo tem seu lado negativo, esse livro também tem o seu: os últimos capítulos eram patéticos demais para se acreditar. Era como um livro de receitas que lhe ensina a fórmula secreta de cura contra o câncer com apenas duas pitadas de pimenta em um copo com água. Patético! Quem acreditaria? Chegava a ser hilário. Eu fechei o livro, tamanha era a idiotice e o larguei em um canto qualquer.   
No entanto... Resolvei pegá-lo de volta para dar uma olhada nos últimos capítulos, outra vez.. Por favor, Stacy, entenda que eu não fiz aquilo porque simplesmente estava acreditando, mas o fiz por uma simples atitude de desprezo e sarcasmo pela vida”.
- Espera um pouco. – Ela o interrompeu e esticou o outro braço para segurar o livro. Ela passou os olhos sobre a capa dele com certo medo e repulsa, abrindo-o imediatamente para se livrar daquela imagem.
Evan mordeu os lábios ao perceber que ela o folheou rapidamente pelo início e diminui a velocidade ao chegar ao final. Nesse momento, passou a observar as últimas páginas do livro com mais atenção, de modo que esqueceu que havia uma arma na outra mão e o porquê dela estar lá. Ele sabia que se precisasse fazer alguma coisa para impedi-la, retirar a arma de sua mão ou sair correndo pela porta, aquele seria o instante perfeito. Mas essas não eram suas intenções e ele queria que Stacy soubesse da verdade, e faria tudo o que estivesse num nível aceitável e correto para que aquilo acontecesse.
O resultado não foi exatamente o que Evan queria, embora ele já estivesse ciente disso.
Stacy movia os olhos incredulamente, havia também em seu rosto um traço forte de desprezo. Era como um crítico renomado que assistia a um filme idiota. Ela segurou o livro com força, exatamente onde sabia que Evan havia mencionado e o ergueu para ele.
Ele sacudiu os ombros, um certo desconcerto era notório em seu rosto, mas não deixou de assentir sobre o livro. Era exatamente ali, exatamente naquela página que Stacy o mostrava, onde ele havia feito o que dera início a todos os seus pesadelos.
Evan tentou se explicar, mas Stacy o mandou parar e colocou o livro de volta sobre a cama. Estava visivelmente irritada com tudo aquilo, principalmente pelo fato de que ele tentara explicar toda aquela bobagem com uma bobagem maior ainda. Aquilo a estava dando nos nervos, já que se sentia uma idiota por tentar acreditar em toda aquela maldita história fantasiosa que apenas crianças poderiam cair.
- O.K. Quer que eu acredite, agora, que você fez uma cartinha, endereçou para o fim do mundo e fez seu pedido tão aclamado? Hein?
Evan coçou o cabelo e balançou a cabeça intensa e negativamente. Pareceu bufar de um jeito fraco.
- Qual é? Acha que eu estava acreditando em uma coisa dessas? Eu acabei de falar que essa era a parte idiota do livro.
- Mas você não achou tão idiota nesse seu estado “depressivo e revoltado”, não é?
- É claro que achei, Stacy. É claro que achei.
- Eu não posso acreditar que você ainda esteja insistindo nisso tudo, Evan. Eu vou embora, e espero que você se cuide.
- Stacy! – Ele gritou. E, de súbito, Stacy ficou petrificada. – Eu quero que você me escute, me deixa terminar pelo menos de contar a porcaria de toda essa história “louca e fantasiosa”?
Ela não respondeu, apenas assentiu, ainda chocada com o grito.
- Eu vou resumir. – Ele lançou um sorriso agradecido, irônico e meio impaciente. – Como eu ia dizendo, eu nunca acreditei nessas coisas do livro. Mas naquele dia... Eu não sei o que me deu. Resolvi abrir no último capítulo e tentei agir de um jeito arrogante. Ou melhor, eu agi de um jeito arrogante. Agora, isso pouco importa. O fato é que lendo cada palavra que tem aí, fiz tudo o que livro e pedi o que eu mais desejava. Mas... Droga! Eu acho que pedi demais, e tudo o que pedi realmente parece estar prestes a se realizar.
- Vai se ferrar, Evan! Vai se ferrar!
Dito isso, Stacy levantou num salto rápido e inesperado da cama, e correu porta à fora. Evan não pensou duas vezes antes de segui-la no mesmo ritmo de corrida, e não teve tantas dificuldades para alcançá-la antes que pudesse chegar ao topo da escada. Ele a agarrou pela cintura, erguendo-a do chão de modo que Stacy passou a espernear em todas as direções. Evan hesitou em segurá-la com mais firmeza quando percebeu que ela se lembrou da arma que tinha na mãos, e girou o corpo, jogando-a com todo o cuidado possível no chão. Stacy ainda tentou golpeá-lo com a arma, mas ela passou a poucos centímetros do rosto de Evan antes de ser arremessada contra a parede e se espatifar no exato momento em que ali bateu.
Evan deu alguns passos para trás, assustado com tudo aquilo e quase perdeu o equilíbrio no topo da escada, precisando se segurar no corrimão para impedir a própria queda. Ele respirava ofegante – mais pelo susto do que por outra coisa -, e estava visivelmente mais abalado do que Stacy, que engatinhou para o canto da parede e ficou o observando com um medo irreparável.
Tentando se recuperar do susto, ele caminhou cautelosamente na frente dela e sentou com as pernas cruzadas. As mãos sinalizavam que nada iria fazer. Evan puxou oxigênio e falou:
- Aquela merda é real, Stacy. A porcaria daquele livro é real. Droga, eu sei o quanto parece idiota, mas a comparação é perfeita: um livro misterioso, que ensina como você pode conseguir o que quer apenas pronunciando palavras de uma língua desconhecida. E eu fiz, é claro que nunca acreditei nessa baboseira, mas fiz por pura diversão. Eu pedi exatamente tudo o que mais desejo, e no dia seguinte... BANG! Começo a ter esses malditos pesadelos. Eu não deveria acreditar nisso, eram apenas pesadelos, é lógico! Eu não me espantei no início. Eram apenas pesadelos, certo? Mas eles começaram a se tornar mais do que reais.
- Sai de perto de mim... – A voz trêmula e falha começava a anunciar um choro inevitável.
Evan não se deu por vencido. Estava determinado a continuar.
- Comecei a ter sonhos proféticos. Sei lá, um lance muito parecido com premonições, sabe? Tipo Final Destination. – Ele passou as costas da mão pela testa suada. Soltou uma risadinha desprezível, deixando claro o quanto estava sendo patético. – Mas, é claro, a morte não veio aqui para cobrar a minha vida. É sério, Stacy... Cada mínimo detalhe que acontecia no meu dia, eu havia sonhado à noite. Fatos como escorregar e quase cair na neve; ou uma xícara de café que caía da minha mão pela manhã... É doidera, não é? Mas, realmente tudo acontecia. Na verdade, essas coisas aconteciam e eu pouco me importava, já estava ficando assustado, mas comecei a ignorar. Até o dia em que tive um pesadelo sobre... Sobre você e o Chris.
Stacy não conseguia dizer mais nada. Ainda ofegava no canto da parede, mas seus olhos pareceram realmente se interessar pelas últimas palavras de Evan.
- Eu sei o porquê da briga que vocês tiveram hoje. Também sei que você vem tendo essas brigas há semanas, sei a razão delas.
- Cala a boca seu maldito maluco de merda!
Evan lamentou por aquilo. Baixou o rosto numa expressão de tristeza, mas compreendia as razões que a levavam a dizer tais coisas.
- Você lembra que há cinco dias, exatamente aqui em frente de casa... Eu quase fui atropelado pelo Chris? – ele perguntou, erguendo o rosto de volta para olhá-la nos olhos. Mencionava um fato que realmente tinha acontecido, torcendo para que Stacy também lembrasse.
- O-O quê você está falando? – Ela conseguiu dizer, embora estivesse convencida do louco que tinha diante de si.
- Há cinco dias. Você estava no carro com Chris. Estavam discutindo, discutindo sério. Ele não olhava para frente, quando se deu conta, eu estava bem no meio da rua. Mas eu pulei para o lado e quando ele freou, o carro derrapou para o lado contrário e...
- O que isso tem haver?! – Ela estava gritando agora. O turbilhão de sentimentos se misturava e começava a nutrir mais raiva de Evan, já que ele usava acontecimentos reais sobre ela para justificar suas loucuras.
- Você lembra?
- Você ficou louco! Deixa eu ir embora!
- Você lembra? – Repetiu.
- Eu quero sair daqui! Por favor!
Evan negou aquele pedido. Novamente, baixou o rosto e levantou-se até a escada, onde se sentou no último degrau e ficou de costas para ela.
- Naquele dia – ele começou, falando num tom mais forte – eu tive outro pesadelo. Não o da sala de estar e dos corpos. Tive esses tipos de pesadelos proféticos ou sei lá como devem ser chamados. Eu via você e o Chris, no quarto dele. Estavam brigando, você parecia gritar, na mão direita segurava o celular dele. Também gritava um nome repetidas vezes, e ele negava, parecia agir ironicamente, tirava sarro da sua cara, sorria e mandava você se acalmar. Mas você não parava, Stacy. Eu não conseguia ouvir tudo o que diziam, suas vozes pareciam ecos distantes que de vez em quando eu conseguia escutar, embora com muita dificuldade. – Ele parou, apenas por um breve instante e virou o pescoço para olhar na direção de Stacy. Espantou-se com o que viu, mas logo se recuperou já que aquela imagem já estava totalmente definida e esperada em sua mente: ela abraçava os joelhos, e apertava fortemente os braços. Algumas lágrimas já desciam de seu rosto e os olhos estavam indescritivelmente arregalados. A boca, entreaberta devido ao choro e ao espanto, evidenciava toda a agonia que sentia. – Desculpe, desculpe, desculpe! – Ele retirou o olhar dela e fitou o chão. – Sei que não deveria dizer isso. Também sei o quanto isso é horrível, até parece que eu estava espionando os dois. Mas... Vamos Stacy, você sabe que isso é impossível. Você quer detalhes? Vou prová-la que não estive espionando, também posso provar que eu não estava lá. Eu jamais faria tal coisa, eu juro! Eu juro! – ele parou, mais uma vez. Ficou em silêncio enquanto ouvia o choro de Stacy. Tentou olhá-la novamente, mas impediu a si mesmo. – Eram exatamente 16h49min. Por que eu sei? Ainda lembro o relógio digital marcando esse horário sobre a cômoda no quarto de Chris. Eu lembro que no segundo seguinte, você arremessou o celular dele no chão, mas não quebrou. Em seguida ele parou de rir, parou de ironizar e até de falar. Caminhou até o celular e jogou-o sobre a cama, depois foi até sua direção e te segurou pelo pulso, nenhum dos dois falou coisa alguma depois disso. Ele te levou até o carro, estava furioso, a puxava pelo braço com agressividade e batia todas as portas pelas quais passava. Ele te obrigou a entrar no carro, e você entrou. Lembro de seu rosto, Stacy. Você sentia medo, espanto, ódio, desolação, tristeza, arrependimento. Suas mãos tremiam mais do que tremem agora. Sabe o motivo de eu ter odiado o que vi hoje e ter desejado matar o Chris de tanta surra? Porque eu já tinha visto aquilo antes, doeu bastante, e hoje pela manhã... Bem, ver aquilo de novo não é muito legal.
“Vocês estavam no carro, e ele arrancou. Você sentiu medo, porque não sabia o que ele pretendia fazer em seguida, ou o que aconteceria com o carro já que ele dirigia feito um bêbado furioso. Você sentiu medo de morrer, consequentemente, tinha vontade de acabar com a raça dele ali mesmo, porém, mais uma vez, sentiu medo, já que sabia o quanto aquilo era perigoso. Suas mãos tremiam. Você lutou bastante para não chorar, e conseguiu. Não queria chorar na frente dele, isso te humilharia e seria apenas outro motivo para ele vangloriar-se da merda do próprio orgulho. Ele seguiu dirigindo da mesma forma descontrolada, você passou o cinto de segurança em volta do corpo e Chris percebeu, ele gargalhou da sua cara e você o mandou à merda. Ele não respondeu, apenas pisou mais fundo no acelerador e seu medo aumentou, Stacy. Era tudo tão visível em seu rosto. Também sentia o carro derrapar sobre o asfalto congelado, isso apenas piorava seu pavor”.
“E então... então um forte alívio surgiu quando você percebeu que já estavam dobrando a rua de sua casa. Ele te xingou em seguida, dizendo que você estava louca e que levara tudo longe demais. Estava apenas fantasiando coisas sobre ocasiões que não existiam. Você respondeu, e, novamente, vocês iniciaram a mesma discussão. Chris está mentindo, eu sei disso, Stacy. Não é preciso ser um grande gênio para notar. Eu sei o porquê vocês estavam brigando, bem como sei que ninguém mais além de vocês dois sabem dessa história. Ou melhor, o lance, o verdadeiro lance que está ocorrendo não foi espalhado no colégio, muito menos pela cidade inteira. Tirando eu, apenas quatro pessoas sabem disso, Stacy. E isso é óbvio: você, Chris, Mike e... Bem, você sabe quem. A verdade é: eu sei porque brigaram, apenas sei através desse pesadelo, onde eu parecia estar lá, embora o estivesse tendo horas antes da discussão acontecer. Eu vi, eu vi Stacy. Presenciei tudo, e não porque eu quis, mas, simplesmente, porquê aconteceu, e porque tudo isso envolvia a minha vida”.
- S-Sua vida?
Evan sobressaltou-se com a voz de Stacy. Mal conseguia acreditar que ela estava prestando atenção nele, embora todas as suas esperanças de que aquilo acontecesse fossem mínimas e quase inexistentes. Notou que a voz dela assumia um tom mais perturbador – pelo fato de que doía bastante, numa forma inexplicável, quando Evan a via naquelas situações de tristeza e pavor -, tal como de uma pessoa à beira da morte e que acaba de ser torturada. Ele também queria chorar junto com ela, tomar todas as agonias que ela sentia. Sentia vontade de rasgar a própria pele, já que sabia que a culpa era somente dele por colocá-la naquela situação.
Mas ela fez parte disso tudo desde o momento em que li aquele maldito livro, não é?
- É, minha vida. Eu sonhei com tudo o que aconteceu... Ou... Sei lá, com o que aconteceria. Antes desse pesadelo, como eu disse, tive outros e tentei por vezes ignorá-los. Notei que era mesmo verdade, e cheguei a achar que estava ficando louco. Acredite, eu estava entrando em colapso, até que... Até que eu tive esse pesadelo envolvendo você.
- E a “sua vida”. – Ela completou, com o mesmo tom de voz afetado.
- Aham. E-Eu... Eu tive esse pesadelo, e todos esses detalhes. Preciso que confie no que estou dizendo...
- Apenas continue, mas que merda!
- Tá bem... – Evan levou as mãos até o rosto, segurou-o firme por algum tempo e só continuou a falar quando retirou as mãos. – Como eu ia dizendo, vocês dois voltaram a ter aquela mesma discussão. Já estavam em nossa rua quando... Quando eu atravessei a rua. Nos últimos dias eu não tenho dormido exatamente para não tê-los...
- Chega desse papo sentimental, Evan. Apenas conte o resto!
Ele calou-se no mesmo instante em que foi interrompido e percebeu o quanto estava agindo de forma idiota. Balançou a cabeça em reprovação à sua atitude e imediatamente continuou.
- Vocês estavam discutindo, nenhum dos dois prestava atenção no caminho, tinham esquecido isso, tinham motivos mais relevantes para fazê-lo. Foi então que eu atravessei a rua, e o Chris não teve sequer o tempo de frear. Aliás, nenhum dos dois viu o que tinham atropelado. Eu sentia a dor tomando conta do meu corpo, Stacy. Era um sonho, geralmente quando se morre nos sonhos você acorda. Mas eu me lembro de sentir a dor. Fiquei imóvel ali no chão, na verdade, mergulhado em uma pilha de neve na calçada. Devo ter ido parar a metros de distância. Sentia a agonia, o sangue saindo do meu corpo, quente, contrastando com a superfície gelada em que eu fora aterrissar. Vocês dois vieram correndo em minha direção, seus rostos estavam sobre mim, lembro dos gritos e a correria pela vizinhança. Então eu apaguei, e quando dei por mim, estava ofegante sobre a cama, dando conta de que fora mais um daqueles pesadelos estranhos. E... E foi isso. – Ele se levantou e caminhou para o lado da escada, mantendo um espaço consideravelmente longe do topo. – Pode ir agora, Stacy. Isso era tudo o que eu tinha a falar. Tudo o que eu...
- Se são pesadelos “proféticos”, você não deveria estar morto agora? Ou, pelo menos, ter sido atropelado?
- Sim, deveria.
- E então, por que não...? – Ela se calou, dando-se conta por fim.
- Eu já sabia que iria acontecer. Eu soube no último segundo quando vi o carro do Chris vindo em minha direção. Eu não acreditei naquele pesadelo durante o dia inteiro, mas quando percebi de quem era aquele carro, quem o dirigia e que vocês dois estavam travando uma discussão lá dentro... Foi aí que eu me dei conta da verdade. Eu seria atropelado exatamente como o pesadelo havia mostrado, aí pulei para o lado. E aqui estou eu.
Ela ficou em silêncio. Olhava para ele totalmente confusa. Gaguejou algumas vezes antes de conseguir falar:
- Como eu vou acreditar em você? Você poderia muito bem ter estado naquele quarto quando...
- Impossível. – Evan a cortou. – Acha mesmo que eu teria tempo suficiente de chegar em casa a tempo? Hum? Principalmente na velocidade em que o Chris veio dirigindo até aqui?
- Mas, mas...
- Você viu, Stacy. Era impossível.
Ela gaguejou novamente. As mãos estavam fechadas, bem como os olhos agora. Algo dentro dela dizia que não deveria acreditar naquela história, mas... Mas, como ela não poderia acreditar quando Evan havia dito exatamente tudo o que acontecera naquele dia entre ela e Chris, quando ninguém mais sabia?
- Fácil... – Ela tentou começar, sentiu a voz falhar e demorou um pouco até conseguir recuperar a voz – O Chris te contou tudo! Ou o Mike, o maldito amiguinho dele. Ele contou tudo a você, Evan! Um dos dois, ou os dois! Eles contaram...
- Acha mesmo que sou amigo deles a esse ponto? – apontou para os hematomas e ferimentos que havia em seu rosto.
Stacy vacilou com aquilo. Tentou dizer mais algumas coisas, mas desistiu, dando-se conta de que havia perdido para Evan. Por mais que aquela história toda fosse maluca, desmiolada ou sem sentido, ele tinha toda a razão. Isso apenas a deixava cada vez mais espantada e atordoada. Não queria admitir, já que isso a tornaria a mais louca da rua, mas... Sim, ela não podia negar que após toda aquela história do “pesadelo profético”, grande parte de sua razão passava a acreditar em Evan. Todos aqueles detalhes sobre a discussão que tivera com Chris... O Celular jogado ao chão... Os momentos em que ele a segurara pelo punho e a arrastara até o carro... O momento em que ele acelerou, fazendo-a colocar o cinto de segurança... Cada instante em que ele a xingava e ria da cara dela... Tudo, exatamente tudo fazia sentido e era contado nos mínimos detalhes com uma extrema perfeição.
Ela levantou e caminhou hesitante até a escada. Ao chegar no topo, olhou para Evan e limpou as lágrimas no rosto.
- Eu não sei com o quê você me contaminou. Não acredito que vou dizer isso, mas... É, eu acho que acredito em você. Eu acho. Isso não garante nada. Tudo o que você disse... Que droga, Evan! O quê que está acontecendo, hein?
- Desculpe. – Involuntariamente ele se aproximou e a envolveu entre os braços. Decerto a pegou de surpresa, mas Stacy nada fez em relação àquilo. Os dois trocaram olhares por alguns segundos e Evan pôs os lábios na testa dela, dando-lhe um beijo intenso, demorado, carinhoso e protetor. Em seguida desfez o abraço e se afastou. – Eu não queria ter de envolvê-la nisso mas...
- Esquece. – Ela respondeu, vacilante. – Eu só preciso pensar sobre tudo isso, tá legal?
- Sim.
- Certo. Err, é... Você ainda é louco. Eu só quero sair daqui.
 - Você tem seus motivos. Não a culpo por isso.
Ela assentiu.
- Já está na hora.
- Ok.
- Ei, eu... Eu juro que não vou chamar a polícia nem coisa do tipo, e também... Ah, que droga, Evan! Maldita história maluca. Eu só preciso pensar, tenho que ir...
- Aham. Obrigado. – Ele sorriu com o canto dos lábios, feliz por saber que ela enfim acreditava nele e principalmente por ter sido maleável tão rapidamente - uma característica ruim num momento conveniente. – Acrescentou.
Stacy desceu os degraus lentamente. Mostrava o quanto estava abalada com tudo aquilo, principalmente agora que passava a acreditar, mas ainda tinha dúvidas. Talvez fossem os 10% de hesitação dentro dela, mas enquanto eles existissem, tão cedo não ficaria em paz. Já estava no meio dos degraus quando resolveu pôr um fim naquilo tudo, girou o corpo e fitou Evan, ainda parado lá em cima.
- Pode me responder uma coisa? – Perguntou com a voz fraca e tensa.
- Claro.
- Se você sabe sobre todos os detalhes daquele dia, então... Pode me dizer qual o número que estava no celular do Chris enquanto eu o segurava?
Evan assentiu, muito hesitantemente. Ela notou que por algum motivo ele não gostaria de ter de responder aquilo, e isso a fez sorrir por dentro. “Uau. Ele se preocupa tanto comigo que... Quer me poupar dessa lembrança?”. Pensou consigo mesma, embora soubesse que era algo bobo e desnecessário para se pensar naquele momento. Era impossível. Sentiu-se encantada, mesmo depois de tudo o que havia acontecido. Evan tinha uma razão lógica e meiga ao não querer responder aquela pergunta, isso porque ele não fazia ideia do quanto Stacy não estava mais abalada com aquilo. Dane-se Chris e a maldita garota dele, eu realmente não me importo, quando eu tenho o Evan-maluco-fantioso-e-crente-em-desejos-misteriosos-de-um-livro-misterioso que se preocupa comigo.
- Evan, por favor, diga. Isso não vai me fazer mal algum. É a última forma para me fazer confiar plenamente em você.
Houve outro segundo de hesitação, mas então ele tomou coragem e falou:
- Havia um número e um nome no celular que você segurava: 497-9582, Kate.
Stacy ficou paralisada. Agora acreditava incondicionalmente em tudo o que Evan contara. A riqueza dos detalhes... E a exatidão com que pronunciara o número, e ainda por cima o nome... Ela iria ficar louca, sem dúvida alguma, mas confiaria em Evan. Mesmo que isso custasse sua sanidade perfeita e seu futuro brilhante. Também acreditaria nele porque – era um motivo idiota, típico de adolescentes eufóricas e apaixonadas – sentia nele algo do qual poderia se agarrar com força, sem medo e hesitação. Afinal, o louco que há algum tempo julgava ser um psicopata delirante, agora se tornara o garoto pelo qual tinha a certeza de sentir-se atraída e admirada. Culpava-se por nunca tê-lo percebido antes, apenas em um momento de pura loucura como o que acabava de passar.
- E-Eu... Preciso ir, Evan. Pode me dar um tempo? Tenho que pensar em tudo isso.
- Tudo bem, Stacy. Mas...
- Mas...?
- Você acredita em mim, agora?
Ela suspirou profundamente, lançando-o o sorriso mais sincero e tímido que era capaz de transmitir.
- Que droga, Evan. É uma loucura tremenda, mas sim. Eu acredito em você.
Evan sorriu de volta, e Stacy desceu as escadas rumo à porta. 

***

Mike acabava de sair do banheiro em seu quarto com uma revista entre as mãos. O rosto suado e o sorriso sádico indicavam o tamanho de seu prazer. Ele jogou a revista para baixo da cama e se olhou no pedaço de espelho que ainda sobrara na porta do quarto. Limpou o rosto e gritou um “já to indo”, em resposta aos berros que sua mãe dava para que ele descesse e fosse jantar.
Ele odiava a maldita família cristã que tinha. Praticamente todos os dias – isso quando não estava fora ou não conseguia fugir – tinha que cumprir aquele ritual de agradecimento na mesa. Se pudesse, comeria pelos cantos da casa apenas na intenção de evitar aquela ladainha ritualística e patética. Se deveria agradecer a alguém pela comida que tinha, esse alguém deveria ser os donos das grandes fábricas, os fazendeiros e todo o resto. Limpou o rosto novamente, por medidas de garantia e saiu do quarto, batendo a porta com força – motivo pelo qual grande parte do espelho que havia ali, não existia mais. Passou pelo corredor em direção à escada com passos pesados, na intenção de mostrar à mãe o quanto ele estava ansioso por mais um jantar em família. Desceu as escadas e caminhou até a sala de jantar, onde se deparou com os pais e a irmã de treze anos, todos os três puritanos que ainda levavam o papo de “família feliz” a sério, bem como o dia seguinte, do qual enchiam a casa com aqueles malditos enfeites natalinos e a árvore que ocupava grande parte da sala de estar. Sua mãe o mandou sentar, com um olhar de repreensão no rosto. Ele obedeceu, embora tudo o que queria fosse responder algo na cara dela, ou até mesmo sair quebrando todas aquelas porcarias que havia pela casa e todo aquele jantar idiota.
 Quebrar...
Sentou-se, mas agora todos olhavam para ele com estranheza. Mike estava sorrindo consigo mesmo, parecia divertir-se com algum pensamento misterioso que absolutamente ninguém naquela sala fora capaz de questionar. E, de fato, ele sorria por ter sido acometido por uma lembrança magnífica: a surra que havia dado em Evan, mais cedo.
Lembrava que aquele nerd maluco aparecera do nada, diante dele e de Chris, implorando para que ouvissem uma história que tinha a dizer sobre estarem correndo perigo. Obviamente, os dois riram e combinaram através de um olhar cínico que prestariam atenção no que Evan tinha a dizer, e que deveria ser breve antes que se arrependessem. Decerto, Chris poderia aguentar toda aquela baboseira que ouviu, de modo que ao terminar, começou a zombar da cara de Evan. Ele sorria e gargalhava, batia os pés no chão com diversão após ter escutado todo aquele papo. Mas o mesmo não acontecia com Mike. Aquilo era mais que um insulto, eles estavam sendo tratados como dois idiotas ao dar ouvidos àquele nerd maluco. Mike não aguentaria ser caçoado, ninguém jamais tirou brincadeiras tão idiotas com ele, não ia ser naquele momento que Evan o faria.
Perdeu o controle. Não foi capaz de dizer nada, sua única reação depois de tudo aquilo foi transferir um golpe no rosto de Evan, fazendo-o cair para trás, estatelado como diarreia. Chris se calou no mesmo instante, surpreso pela ação imediata e inesperada do amigo. Mike sorrira de canto e soltara vários xingamentos em seguida. Só então Chris começou a rir também, convidando Mike para a “festa”. O amigo começou ao depositar um chute forte na perna direita do nerd, podendo muito bem tê-lo quebrado os ossos.
Os dois amigos continuaram por um longo tempo, somente pararam porque tinham outras coisas a fazer, caso contrário, continuariam com a “bela arte de surrar Evan Dover”. E era disso que Mike ria naquele momento: estava se divertindo bastante ao relembrar a cara de dor do nerd, e todo aquele sangue colorindo a neve em que ele estava caído.
- Uau! O espírito de Natal enfim iluminou sua alma, maninho? – A irmã de Mike cortou o silêncio.
Ele a olhou com o rosto ardendo em irritação. Bateu uma das mãos sobre a mesa, fazendo os talheres pularem e alguns copos caírem, tentou se levantar, mas foi impedido assim que seu pai gritou para que se sentasse. Mike obedeceu, embora seu rosto tivesse corado ainda mais pela atitude do pai.
- Você me paga, moleca. Você me paga. – Mike sussurrou em direção à irmã, ela respondeu com uma careta de desprezo.
- Parem de tolices, crianças. – O pai disse – E Mike... Sua irmã não deixa de ter razão. Você pode, pelo menos, uma vez na vida, respeitar tudo a sua volta nessa época? Amanhã é véspera de Natal, e eu realmente lhe peço para...
- Tá, ta! – Mike respondeu, forçando um sorriso para o pai. – Vou respeitar toda essa coisa, papai. – pronunciou a última palavra com desdém, e deu-lhe uma piscadinha. – Amanhã é véspera de Natal, vamos esperar até meia-noite e quem sabe Papai Noel não desce pela chaminé trazendo muitos, muitos presentes? E aí? Será que ele se deu ao trabalho de ler minha carta, este ano? 
A irmã fez um bico, balançando a cabeça e se convencendo – pela milionésima vez – de que tinha um irmão idiota com um cérebro do tamanho de uma ervilha, ou menor ainda. A mãe pôs as mãos no rosto e totalmente decepcionada, balançou a cabeça. O pai, apenas bufou, estreitando os olhos repreensivos na direção do filho e esticou uma das mãos para a filha e a outra para a esposa, ambas fizeram o mesmo na direção de Mike, que resmungou algo baixo e soltou uma risadinha irônica, mas também segurou nas mãos delas.
Mike não suportava aquilo. Tinha a vontade cuspir sobre a mesa e gritar na cara daqueles três puritanos, sair de casa e se ver livre pelas ruas. Mas... Não, ele não podia. Pelo menos não por enquanto, ainda mantinha certo “bom senso” dentro de si. O pai começou aquele maldito costume, agradecendo pela refeição que tinha sobre a mesa e por mais uma dezena de coisas que não tinham nada haver com comer ou jantar.
A droga do agradecimento dava uma volta, de modo que quem estava falando nesse momento era sua mãe, o que indicava que a próxima pessoa seria ele. O que eu daria para ter que me livrar disso?! As palavras de sua mãe já estavam quase no fim quando ouviu-se um barulho forte, vindo do telhado da casa, que fez todos naquela mesa se dispersarem dos agradecimentos. Mike vibrou por dentro.
Já era de se esperar que um sorriso fosse presente em seu rosto, todos em volta notaram, mas ninguém teve a chance de contestar aquela atitude. Outro barulho aconteceu, dessa vez, mais forte e violento, como se uma pedra de 20 quilos tivesse sido arremessada ao telhado. O pai de Mike se levantou, e, no exato momento em que fez isso, um som ensurdecedor veio da sala de estar. Todos se assustaram, sem dúvida alguma algo deveria ter atravessado a parede da sala, foi a primeira coisa que Mike pensou. Alguns objetos ainda caíam, e uma densa massa de poeira tomou conta dos outros cômodos da casa, exatamente vinda da sala de estar.
O pai de Mike gritou para que ficassem ali mesmo, mas apenas um alguém não obedeceu à ordem.
O garoto ignorou a voz de seus pais e o grito de pavor da irmã, correndo em direção à sala. Nunca dera atenção à família, não seria naquele momento de pura curiosidade e euforia que agiria diferente.
A massa de poeira que vinha da sala de estar era incrivelmente assustadora e desnecessária, Mike sabia que, mesmo se a parede de fato tivesse sido derrubada, não seria capaz de tomar os cômodos da casa de tal forma. Ele continuou a caminhar pela sala de estar com o antebraço protegendo os olhos, apesar de toda a dificuldade diante dele, sabia muito bem caminhar por ali, mas seus passos eram cautelosos e lentos. Mentalmente, sabia o rumo de todos os móveis, tendo consciência de onde se encontravam o sofá ou a mesa decorativa no meio da sala. Ele desviou de uma ou duas mobília, mas subitamente parou assim que sentiu as canelas chocarem-se com algo grande e duro, provavelmente um pedaço de concreto. Não lembrava um encontro às cegas no escuro, por mais que estivesse correndo (em uma situação normal) e encontrasse a canela de outra pessoa, a dor não se igualaria nem de longe àquela que ele sentia agora. Mike gritou com aquilo, já que, embora caminhasse lentamente, o baque com o objeto parecia doer e propagar até à alma. Caiu de joelhos e levou as mãos às canelas, segurou-as firme numa forma fracassada de anular a dor, mas, para seu desespero, algo naquela batida se mostrou estranho.
Ele percebeu que suas mãos estavam molhadas por um líquido denso e pesado, as pernas estavam completamente encharcadas por aquilo. A dor também não passava, apenas piorava conforme os segundos iam prosseguindo. Mike gritou mais alto, arregalava os olhos e olhava em volta, mas não conseguia enxergar nada além da poeira. Ele passou a gritar mais forte, implorava por ajuda e dizia o quanto suas pernas doíam, mas ninguém parecia escutar seus apelos. Ao se dar conta disso, ele começou a soltar todos os tipos de xingamentos e palavrões que seu vocabulário dispunha.  
Mas de nada parecia adiantar, até que...
A poeira não baixou a ponto de favorecer sua visão, mas diminuiu o suficiente para que visualizasse uma silhueta baixa e gorducha em sua frente. Mike se calou. Sofria com a dor nas pernas, queria gritar e matar alguém se fosse necessário, mas, naquele momento, apenas naquele exato momento, ele perdeu a voz e todas as palavras que conhecia. Os olhos estavam, agora, arregalados numa visível expressão de terror, as mãos ainda seguravam as próprias pernas, e por um breve segundo ele sentiu que aquele líquido jorrava de dentro para fora. Mike estremeceu. Achou que poderia ser sangue. E... Era mesmo sangue?
Ele não teve a coragem de constar.
A poeira diante de seus olhos se dissipou um pouco e ele teve a completa e perfeita visão de quem... Ou melhor, do quê estava em sua frente.
Não podia acreditar nos próprios olhos. Imaginou que, se aquela história maluca que as bíblias contavam sobre inferno e demônios fosse real, então ele estava diante da verdade. Embora conhecesse a imagem daquela coisa diante de si, não podia deixar de se convencer que aquilo fugia totalmente dos padrões. Não era daquele jeito, afinal de contas, que as histórias o descreviam ou como as propagandas de TV o mostravam. Aquilo que estava de diante de Mike era uma versão assustadora e demoníaca do...
- Olá, Mike! Soube que você foi uma criança muito, muito travessa este ano, e por esse motivo eu vim aqui para lhe dar a devida punição. HOHO.
Assim que aquela coisa disse tais palavras, Mike soltou as pernas e girou o corpo na direção contrária, tentando engatinhar para fugir dali. Só então percebeu que suas mãos estavam repletas de sangue, ele gritava novamente, chamava e clamava pela a ajuda do pai, mas não obtinha respostas.
Ouviu os passos atrás de si, e esse som o impulsionou como um combustível eficiente: Mike engatinhou com mais determinação, e de fato conseguiu alcançar uma boa distância com aquilo. A poeira ainda não baixara totalmente, de modo que nesse momento ele não conseguia enxergar absolutamente mais nada que estivesse diante de seus olhos. Os passos daquela coisa continuavam no mesmo ritmo, apesar de Mike estar mais rápido a cada segundo. Ele engatinhou por mais um longo tempo, e parecia chegar a lugar algum, ou então, imaginou, estava engatinhando em círculos. Que merda! É apenas a porcaria de uma sala minúscula! Que porra é essa?! Ele continuou e continuou, gritava até sentir a garganta irritada. E enquanto o fazia, um rastro de sangue ia sendo deixado pelo chão, Mike não percebia, tampouco notara que isso era um fator crucial e fácil para ser perseguido. Sequer adiantaria se esconder, já que o sangue que jorrava de suas pernas indicaria onde a caça havia se entocado.
Após algum tempo, sentiu os braços fraquejarem e seu corpo entrar numa inércia maior. Aos poucos não conseguia mais sustentar seu próprio peso com as mãos, caindo assim no chão. Ele gemia de dor, gemia fraco e algumas lágrimas já caíam de seus olhos. Sentia-se uma criança perdida querendo a presença dos pais ao lado.
Estou sendo perseguido pelo...
Então se calou. Mike entrou em um momento de profundo arrependimento e vergonha - daqueles em que a pessoa vê tudo diante dela desabar pelo simples motivo de não ter dado a devida atenção para impedir a tragédia. Pela primeira vez em muito tempo, Mike pensou racionalmente e ponderou tudo como um homem sábio: ele fora avisado sobre aquilo, mais cedo, naquele dia, o próprio Evan havia mencionado o fato de que Mike corria um grande perigo, e que deveria confiar nele a qualquer preço. Afinal, sua vida dependeria daquilo.
Evan me avisou e eu... E eu... Não liguei!
Por algum motivo, sabia que Evan não tinha culpa. Ele apenas... Sabia. Evan jamais participaria de uma coisa daquelas, era uma pessoa puritana demais para arquitetar algo do tipo, e além do mais, todo aquele ataque era surreal demais para qualquer humano. Ninguém jamais conseguiria fazer tal coisa, era sobre-humano demais, praticamente... Diabólico. Mike chorava. Encolhia o corpo e sentia as pernas arderem de dor. O corpo começava a ficar mais e mais fraco, também parecia perder a temperatura. Um suor gelado descia-lhe as têmporas, as mãos ensanguentadas tremiam incontrolavelmente. Tudo o que ocorria com Mike se resumia a duas coisas: medo e arrependimento
Foi quando ouviu um som: ao seu lado, a menos de dez centímetros, ele pôde enxergar a bota negra e suja do indivíduo, e ao lado delas, um objeto colorido e ensanguentado na ponta... Mike gelou. Soube que fora aquilo que cortara a sua perna, só poderia ser. Tentou analisar o objeto com atenção e apenas obteve êxito após alguns segundos: era uma espécie de objeto cilíndrico, comprido e colorido entre linhas alternadas vermelhas e brancas, lembrava com exatidão a armação de um guarda-chuva. Seja lá o que fosse, o ser apoiava-se no objeto. A ponta reta o sustentava no chão e seguia até a mão dele, onde terminava num formato de arco. Para fazê-lo, Mike precisou erguer o rosto para melhor ver o objeto, de modo que inevitavelmente encarou o rosto do indivíduo. Notou que a boca negra era escondida sob a barba encardida e cheia de sujeira; uma substância negra e pegajosa descia de sua boca, ele sorria de um jeito sádico – exatamente como Mike costumava rir – e indescritivelmente amedrontador.
O indivíduo notou que Mike o olhava, e então soltou aquela risada inconfundível. Apoiou as duas mãos sobre a parte em que o objeto tinha sua curvatura e inclinou o rosto para baixo, de modo que aquela coisa negra de sua boca caiu sobre o rosto de Mike. A criatura se divertiu mais ainda, gargalhando forte.
- Por favor, por favor! Não me mate! Não me mate! Por favor, eu não fiz nada, me deixe sair daqui... – Mike implorava. Deu-se conta do quanto sua voz tinha um nível fraco e um tom agudo, tal qual o de uma menininha. Mas não se importou e continuou a implorar.
O indivíduo gargalhou novamente. Era só o que sabia fazer. Seus olhos tinham um tom vermelho-sangue, e se estreitaram quando Mike continuou com as súplicas, analisando-o com uma falsa piedade digna de caçadores ao caçoar de suas presas. Ele voltou à postura de antes, mas cuspiu um pouco mais daquela gosma negra em cima de Mike. Continuou gargalhando naquela diversão sádica e disse:
- Me perdoe, pequeno Mike. Mas as regras não são essas. Você foi muito travesso, fez coisas muito feias e desobedeceu seus pais. Disse muitos palavrões e não agiu de forma boa e comportada. HOHO. Desculpe, mas apenas as crianças boas estão no poder de fazer pedidos, e você... Ahh Mike, você não é uma delas!
Em seguida, não houve tempo para que Mike reagisse.
O indivíduo moveu discretamente a mão sobre o objeto em sua parte superior, da qual se apoiava, e automaticamente, na parte inferior que o apoiava no chão – como num dispositivo perfeito - duas lâminas pularam para fora, eram cintilantes e afiadas, estavam acopladas naquele objeto deixando aquela área num formato de “T” invertido, com suas pontas horizontais levemente inclinadas numa concavidade para cima. Mike observou a tudo com a boca escancarada, tentou gritar novamente, mas sua voz não mais saía. Ele se debateu no chão, porém não houve tempo: o indivíduo jogou uma daquelas lâminas até a lateral do rosto de Mike, o metal penetrou com extrema facilidade e só então o grito – pavoroso e ensurdecedor – dele saiu. A dor era indescritível, o metal estava cravado na bochecha do adolescente, e quando seus gritos se tornaram mais fortes, o indivíduo voltou a gargalhar e moveu o objeto pelo rosto de Mike em direção ao nariz. Os gritos ficaram mais fortes, ele se batia no chão como um animal em sacrifício, obrigando o monstro – em forma humana - a continuar o movimento até chegar ao outro lado do rosto de Mike.  
Os gritos pararam.
O indivíduo continuou a gargalhar, então retirou a arma e contemplou a face desfigurada e morta de Mike.
Fora tão rápido e fácil, de uma forma incrivelmente dinâmica e eficiente. Era um modo ágil e simples de desfigurar um rosto e aniquilar uma vida.
- HOHOHO! Já tenho o primeiro presente, querido Evan.
Mas ele não parou. Continuou os mesmos movimentos por todo o corpo de Mike, e parecia se divertir com aquilo. Quanto mais o dilacerava – superficialmente, no entanto – mais gargalhava. Era como uma brincadeira para ele, na verdade, parecia muito com uma criança que brinca num parque de diversões e não sabe a hora de parar.
Parecia.
Por fim, deu-se por satisfeito e afastou o objeto do corpo de Mike. Fez novamente um movimento discreto na parte superior, obrigando as lâminas a voltarem para dentro, dando novamente à arma o formato de uma bengala colorida nas cores vermelhas e brancas. Ele sorriu e caminhou em direção à lareira, assim que se pôs diante dela, deu uma olhada no ambiente e notou que árvore de natal ainda brilhava em todas as suas luzes alegres, ele gargalhou mais alto e agachou-se para entrar na lareira.
Os pais de Mike e sua irmã entraram correndo na sala de estar, procurando por ele. Notaram o caos que o cômodo da casa se encontrava, estavam atordoados e confusos, não sabiam onde Mike estava, embora – na visão deturpada deles – ele tivesse corrido até ali há pouquíssimos segundos.
Foi Michelle, irmã de Mike, de apenas treze anos, quem viu a verdadeira cena de horror. Ela apontou para o corpo ceifado do irmão, totalmente estraçalhado e retalhado, sobre o chão ensangüentado. Mike estava morto, sem vida, e claramente, sem um rosto digno que pudesse ser apreciado no dia de seu velório. Ela gritou. Os pais viram a cena e também fizeram o mesmo. Estavam horrorizados com a imagem cruel e sanguinária diante deles.
Ironicamente, Mike estava deitado exatamente ao pé daquela árvore de Natal que tanto irradiava amor e calmaria, através de seu brilho forte e alegre – exatamente como um presente natalino.

***

Evan quase não ouviu o telefone tocar ao seu lado.
Estava imerso na água da banheira – adorava aquele ambiente, trazia-lhe paz e clareava seus pensamentos, além do fato de se sentir como aquelas pessoas incrivelmente ricas dos filmes que passavam grande parte do tempo na banheira, bebendo e fumando, e às vezes até fazendo coisas ainda mais prazerosas – de olhos fechados, transpondo a mente para milhares de quilômetros dali. Submergia apenas quando realmente necessitava de ar, e, graças àquela atividade constante que apenas fazia quando os pais não estavam em casa, ele alcançara nos últimos meses a incrível marca de 74 segundos sob a água. Sentia um ligeiro orgulho de si mesmo, julgando que, em situações de emergência das quais lhe exigissem fôlego, não teria problema algum em executá-las.
Ele ainda não havia alcançado os 40 segundos – e o tempo parecia se arrastar de uma forma diferente dentro d’água, de uma forma mais prolongada – quando percebeu que o telefone berrava ao lado da banheira. Abriu os olhos rapidamente, saiu da água deixando-a até o tórax e enxugou a mão na toalha que estava ao lado do telefone sem fio, sob um banquinho.
Passou o olhar sobre o visor do telefone e, ao identificar o número, engoliu em seco, dando-se conta de que ainda não tinha um plano devidamente formado para aquela – inevitável – ocasião. O telefone ainda berrou incomodamente por algum tempo, e só então atendeu com uma notável hesitação.
- A-Alô?
- Evan! – A voz no outro lado da linha soou realmente agressiva para o ouvido do garoto. Ele conhecia perfeitamente aquele tom, e se encolheu na banheira. – Por que não atende esse telefone? Onde você estava?
- Estava... Estava no quarto, arrumando as coisas. – Mentiu.
Uma pequena pausa na voz do outro lado, mas logo continuou:
- Você já deveria estar aqui. Por que ainda não chegou?
- É, eu sei, pai... – Ele pensou em se desculpar primeiro, mas sabia o quanto soaria culposo. Já teria de inventar bastantes coisas naquela conversa e acentuar uma atitude suspeita àquilo não o ajudaria em nada.
- Por que ainda não está aqui?
Evan vacilou.
Todos os anos, naquela época, como já era de costume, sua família passava o natal e as vésperas do ano novo na enorme casa de seus avós. Todos os parentes mais próximos, seus tios e tias, primos e primas, passavam aqueles últimos dias juntos, exatamente como uma verdadeira e enorme família feliz. Evan adorava aquilo, bem como adorava os conselhos e histórias do avô, o carinho mimoso e as receitas de sua avó. Os tios brincalhões, irmãos de seu pai, contando a cada 45 segundos uma piada nova que parecia especialmente selecionada para aqueles momentos, e o melhor de tudo: nunca perdiam a graça. O ambiente em que Evan cresceu sempre fora aquele, cercado por uma grandiosa e harmoniosa família. Era a melhor época para ele, realmente se sentia bem com a alegria que envolvia todas as pessoas que iam até a casa de seus avós. Era uma tradição, e Evan era uma das pessoas principais naquela típica, mas diferente reunião familiar. Era um dos poucos netos, e o mais próximo do avô e da avó. Por isso, sua presença lá era essencial. Ele deveria estar entre seus parentes há exatamente um dia, mas as coisas saíram de seus planos e envolviam assuntos – e ele se recusava a dizer isso, embora soubesse que era verdade – mais importantes do que uma reunião de família.   
- Por que ainda não está aqui, Evan? – O pai vociferou. Estava visivelmente irritado e isso dificilmente acontecia. Não. Raramente acontecia. Evan se encolheu ainda mais.
- Aconteceram alguns problemas...
- Quais problemas? – A voz do pai passou de brava para preocupada. – Quais problemas, Evan?
- Acalme-se. Nada que lhe tire o sono, pai. – Mentira. Queria dizer a verdade, mas ela não tiraria apenas o sono de seu pai, como também a própria vida. 
- Está mentindo. O que aconteceu? Conte!
Que droga, por que os pais precisam fazer tantas perguntas?
- Evan?
- Pai! – Elevou a voz, condenando-se por isso e se corrigindo imediatamente. – Não se preocupe. É um problema com um amigo, ele precisou da minha ajuda, e insistiu nisso. Eu tentei dizer que não poderia ajudá-lo, mas... Uau! O cara é realmente um pé no saco, eu ouvi a história toda e me dei conta do quanto o problema é grande.
Exceto pela parte da ajuda de um amigo, todo o resto era verdade... Só estava um pouco vago e omitido.
Seu pai pareceu cair, mas não totalmente. Evan continuou, com o tom mais mentiroso e astuto que nunca imaginou possuir:
- Talvez você o conheça. Não sei exatamente. Eu já estava quase de saída, faltavam apenas algumas roupas na mochila quando ele bateu na porta, ontem de manhã. E...
- Evan, Evan!
- Sim? – Ele parou após a interrupção.
- Eu sinto muito pelos problemas que vocês adolescentes enfrentam. Provavelmente deve ser uma garota, certo?
Evan não entendeu. Também não soube identificar quais emoções o tom de seu pai passava pelo telefone, estava confuso e não sabia o que dizer. Apenas falava o que lhe vinha na ponta da língua. De qualquer forma, se sua mentira de fato estava saindo convincente, seu pai estava caindo. E, fosse ou não impressão de Evan, ele parecia – agora – disposto a soltar uma frase de incentivo e compreensão, entretanto, sentia a chegada de um “mas” no final.
- Sim, pai. Uma garota. – Evan retrucou num arfar fraco e desanimado.
- Eu sabia.
- É, acertou.
- Sim. Mas não muda o fato de você ainda não estar aqui, problemas assim podem esperar Evan, preciso que venha já para...
Ele não ouviu o resto. O som da campainha se fez presente no andar de baixo e Evan tinha uma certeza absoluta e desconhecida de quem poderia ser. Apoiou o telefone entre a orelha e o ombro molhado e saiu rapidamente da banheira, envolvendo a toalha no corpo. Ouvia a voz de seu pai, e provavelmente, ele estava lhe dando uma tremenda bronca a julgar pela força de sua voz, mas Evan não prestava atenção, tampouco dava bola ao que o pai dizia. Apenas respondia quando este o perguntava se estava entendendo, ele soltava um “aham” automático a cada 15 segundos ou menos.
Caminhou apressadamente até o quarto, enfiando as roupas no corpo com agilidade. Quase caiu para trás no momento em seus pés molhados grudaram no grosso tecido da calça jeans. Conseguiu se equilibrar bem a tempo, jogando-se contra a cama para que o estrago não fosse maior. Respondeu um “aham, é, eu sei me desculpe” ao perceber que suas falas já estavam mecânicas demais, mas retirou rapidamente o telefone do ombro quando precisou vestir as várias peças de roupa para se proteger do frio, e quando amarrou as botas pretas nos pés.
Enquanto o fazia, a campainha ficava mais forte já que era apertada com mais agilidade e sem pausas. Evan olhou sua imagem no espelho e de certo modo parecia satisfeito com a própria aparência – apesar dos hematomas e do corte, além dos notáveis círculos escuros em volta dos olhos. Preferiu não pentear o cabelo, já que aquele embaraçado no qual se encontrava o fez parecer menos tenso e mais descontraído.
Que droga é essa, Evan? Você não vai a um encontro, e não é a hora certa para se pensar nisso!
A campainha berrava no andar de baixo, Evan agarrou o telefone e repetiu a última fala com mais ênfase. Correu na direção da escada abaixo e ao chegar lá embaixo, resolveu dar a devida “atenção” ao seu pai. Ele segurou o telefone com firmeza contra a orelha e imitou um suspiro perdedor.
- ...Você entendeu!? – Escutou o pai completar.
- Sim, pai. Eu entendi.
E então, sem que ao menos esperasse, o pai desligou o telefone do outro lado. Evan estranhou a atitude e balançou a cabeça, se perguntando o que teria perdido das últimas palavras de seu pai. Ele não havia escutado absolutamente nada, e mais tarde se arrependeria de não tê-lo feito.
Jogou o telefone sobre o sofá na sala de estar – aquela mesma que tanto o amedrontava durante seus pesadelos constantes e repetitivos, que o ofereciam uma nova surpresa e revelação a cada vez que o tinha – e correu para porta da frente. Não demorou a abri-la, tampouco se atrapalhou com todos os trincos que passara nela, como forma de proteção – mesmo sabendo que se estivesse em perigo, fosse o que fosse aquela coisa, poderia facilmente entrar em sua casa usando apenas a chaminé ao invés da porta. E soltou um longo suspiro quando abriu.
Evan engoliu em seco.
Mais uma vez presenciava a cena que tanto o atormentava quando se trava dela. Os olhos estavam visivelmente inchados, delatando horas de lágrimas. O cabelo escuro era preso em um rabo de cavalo provisório e sem preocupações com a estética; as mãos, embora estivessem dentro dos bolsos do casaco, tremiam constantemente. Ela chegava a soluçar, e seu olhar implorava por algo que somente Evan poderia lhe proporcionar. Vê-la daquela forma não era fácil, ele mesmo tinha vontade chorar com a dor que a imagem lhe causava, mas precisava ser forte por ela, e mesmo quando todas as suas esperanças e coragens estivessem extintas, Evan ainda assim teria forças para passar uma segurança desmedida à garota. Iria protegê-la até o fim.
 – Stacy? – A voz saiu forte e segura.
Ela não respondeu. Sorriu na direção dele com o canto dos lábios, rapidamente, e agarrou-o pela mão e o puxou consigo. Evan estranhou a atitude dela e parou, obrigando-a a também fazer o mesmo.
- O que está acontecendo? – Ele perguntou, a voz calma.
Ela não conseguiu responder.
Evan apertou a mão dela acolhedoramente. Nesse momento estavam diante um do outro, e uma das mãos dele subiram até o rosto dela, onde uma lágrima desceu de seus olhos através da bochecha. Ele enxugou com o peito ardendo em agonia. Pessoas correndo perigo, e ele se distraindo com tal fato, pensando no bem estar supremo de Stacy e... E em como seria tê-la entre seus braços, sentir seu perfume e o calor. 
Mas ele não o fez. Apenas a contemplava com um olhar carinhoso, tentando transmitir à ela toda a segurança possível.
- O que houve? – Ele sussurrou, insistindo.
Então não houve pressa. Os dois permaneceram ali, frente a frente. Os olhos verdes de Evan contra os olhos misteriosamente atraentes e escuros de Stacy. Aquela imagem tão vulnerável e delicada diante dele; e um garoto nerd determinado e forte que ela jamais sonharia ver. Ficaram em silêncio por um longo tempo. Evan não tinha pressa de escutar o que ela tinha a dizer, já que se pudesse ficar ali por uma eternidade apenas para lhe dar a devida confiança e calma, ficaria.
Então Stacy apertou a mão dele contra a sua e o fitou com certo receio.
- Não tenha dúvidas de que acredito em você, Evan. – Sua voz saiu fraca, melancólica.
Evan apenas assentiu.
- Não tenha. – Ela repetiu.
- O que houve? – Perguntou, a voz calma e compreensiva como antes.
Outra lágrima escorreu do olho direito de Stacy. Evan a enxugou com mais delicadeza, de modo que seu toque a fez arrepiar e estremecer, como se o solo em que pisasse estivesse tremendo sorrateiramente. E apenas para ela.
Stacy olhou mais profundamente na coloração verde de Evan, um sorriso embaraçado surgiu entre seus lábios. As bochechas ficaram vermelhas, mas a mudança não podia ser percebida graças ao ambiente frio que já lhe causava tal efeito sobre a pele clara. Ela sabia que tinham corado, graças à ardência atípica que agia naquela área. Novamente, o chão sob seus pés pareceu tremer, o corpo – especificamente as pernas – vacilou e Evan a segurou com uma firmeza demasiadamente delicada. Stacy queria se controlar, mas não conseguia. O corpo estremecia a cada atitude de Evan; as bochechas coravam com cada toque preocupado e cada olhar carinhoso. Sentia-se tão... Leve e frágil junto dele. Incrivelmente frágil, mas irrefutavelmente protegida.
Leve.
Mas grande parte daquelas sensações não ocorria em função da presença do garoto, e sim do medo que a acometia. Tinha uma notícia a dar, algo que a atormentara desde o telefonema que recebera àquela manhã. De repente, toda a mirabolante história de Evan fazia um cruel sentido, e 24 horas sequer havia sido completadas desde que ele revelara sobre os sonhos proféticos e a criatura iminente que vinha rondando a vizinhança. Então fechou os olhos, inspirando o ar frio com cautela para que ele não machucasse seus pulmões. Em seguida, moveu lentamente os lábios para falar, mas só o fez quando abriu os olhos e fitou o garoto:
- Algo aconteceu. Você tem que vir comigo, Evan. Por favor.
A resposta dele saiu no segundo seguinte, com o mesmo tom de voz:
- É claro.
Em seguida, os dois seguiram para o carro dos pais de Evan. Ele abriu a porta para ela, tratava-a como outro cara jamais tinha feito. Apesar de embaraçada e com as bochechas ainda mais coradas, Stacy sorriu, a ponto de mostrar seus dentes brancos e perfeitos. Um sorriso que se erguia por todo seu rosto, de orelha à orelha.
Stacy sorria, embora o momento não fosse o mais adequado para aquilo.
Era um momento para lágrimas.
Era um momento para o medo.      

Evan não acreditava nos próprios olhos.
Toda a razão dentro dele não o deixava dúvidas sobre o que estava enxergando diante de si, mas havia uma parte – e ela era grande, mas não tão forte quanto a razão – que o forçava a acreditar que aquilo não passava apenas de uma peça que seus olhos pregavam, queria que fosse apenas mais um daqueles malditos pesadelos, mas o fato de ele nunca ter tido aquela premonição durante o sono o arrastava com mais força para a realidade: era tudo verdade.
As mãos apertavam o volante, os nós dos dedos já estavam brancos àquela altura. O corpo estava inclinado para frente, ele tentava enxergar melhor – cada detalhe -, seus olhos estavam arregalados, bem como a boca que se contorcia num espasmo de dor e culpa. Ele murmurava algo, Stacy não entendia, nem mesmo ele. Uma gota de suor brotava de sua testa, mesmo com toda aquela baixa temperatura, o aquecedor do carro estava ligado, mas não seria capaz de causar aquilo. Era apenas o nervosismo misturado ao medo e à iminência dos fatos.
Stacy se mexeu no banco do carona e o observou com uma espécie de compaixão nos olhos. Só então percebeu o quanto o desespero dele era forte mesmo antes da cena. Não fazia tanta ideia do quanto o atormentavam, todos aqueles pesadelos proféticos, aquelas visões. Stacy o olhava com intensidade, notando cada expressão visível em seu rosto e cada emoção escondida sob os olhos verdes. Via, acima de tudo, a imagem de um homem derrotado que tem todo o seu esforço jogado por água abaixo. Um homem derrotado. Ela tinha apenas uma noção do que ele parecia sentir, e temia como seria aquilo, caso fosse com ela.
Levou uma de suas mãos até o ombro dele e o acariciou levemente.
Não foi o suficiente. Evan ainda estava arrasado e mal pareceu notar a atitude dela. Permaneceram em silêncio por um longo tempo, Evan na mesma posição, apenas os olhos arregalados de pavor se moviam, e Stacy não queria olhar aquela cena já que não tinha toda a força e coragem para fazê-lo, como o garoto fazia.
- Como você soube? – Ele perguntou. Stacy estranhou a frieza em sua voz.
- Recebi a ligação de Chris assim que acordei. Ele me contou tudo.
Evan soltou uma risadinha nervosa, e só então olhou para Stacy.
- Não teve medo? – Os olhos verdes se estreitaram ainda mais na direção dela. Agia de uma forma estranha, era movido pelo fracasso. – Medo de me ver hoje? Medo de mim?
- Por que eu deveria, Evan? – Ela rebateu com um tom indignado na voz.
- Porque eu disse o que aconteceria. E aconteceu. Não acha muita coincidência?
Mais indignação da parte de Stacy.
Seus olhos arderam e ela balançou a cabeça em tom de reprovação. Retirou a mão do ombro dele e olhou para frente – mas não estava realmente olhando. Era compreensível que Evan reagisse com uma ideia de culpa, mas chegar àquele ponto?
- Está sugerindo...
- Estou sugerindo – Ele a interrompeu – que você deveria sentir medo. De mim.
- Não faz sentido, Evan. Por que eu teria medo de você?
- Uma pessoa em sã consciência sentiria. – Ele mal notou o que havia dito, mas continuou – Eu disse que aconteceria, e olha o que está diante de nós, Stacy. Eu mesmo poderia ter feito isso! Você não deveria estar do meu lado quando...
- Cala a boca. – Ela foi categórica.
Evan se calou, não disse mais nada. E então ela aproximou o rosto na direção do dele, para fitar com mais precisão seus olhos.
- Evan, eu disse o quanto acreditava em você, não disse? Estou em sã consciência, depois de todas as provas que você me mostrou; os pesadelos; os mínimos detalhes da briga que tive com o Chris... E agora isso. Uma pessoa em sã consciência acreditaria em tudo, e estou em sã consciência, Evan. Droga! – Ela passou a ponta dos dedos pelo rosto dele, e esbanjou um sorriso encorajador. – Você jamais faria uma coisa dessas. E o telefonema que recebi do Chris hoje de manhã... Ele me contou algumas coisas. – A voz dela se tornou temerosa nesse momento. Um forte arrepio desceu-lhe a nuca para o corpo inteiro.
- O que ele disse?
Stacy abriu os lábios para contar, quando foi interrompida pela imagem diante deles. Agora sim estava vendo com mais clareza, com mais atenção. Não enxergava o que queria, como há pouco fazia na intenção de bloquear o alvoroço que se armava ali na frente. Estava fora de seus devaneios, não mais distraída, e sim atenciosa ao que ocorria ali na rua.
Os carros de polícia e duas ambulâncias estavam parados sobre o gramado da casa de Mike. Alguns policiais mantinham os vizinhos e outros curiosos afastados, repreendendo com firmeza aqueles que ousavam atravessar a barreira que havia sido montada com a faixa amarela. O clima de terror e confusão era inconfundível, as pessoas cochichavam entre si e apontavam na direção da casa, umas gesticulavam com os braços e Stacy imaginou que seria o tipo de gente que se vangloria por saber uma parte da história. O movimento de paramédicos e policiais que entravam e saíam da casa também era intenso, e ela também notou que algumas pessoas com luvas nas mãos e câmeras penduradas no pescoço conversam entre si na varanda da casa, pareciam esperar por alguma coisa, certamente o “fim” do trabalho da polícia dentro da casa. Eram os peritos. Stacy se arrepiou, o corpo estremecendo de uma forma amedrontadora. Imaginou o que haveria dentro daquela casa, lembrava das palavras de Chris pelo telefone mais cedo: “Quem faria uma coisa dessas? Nem mesmo um animal faria. Eu vi! Eu vi, Stacy...”.
Outro arrepio, novamente. Ela fechou os olhos e tentou afastar a ideia da cabeça, mas era como tentar afastar uma pesada nuvem de chuva com um assopro. As imagens vinham. Não sabia como era, tampouco desejaria saber, mas o artifício do medo e da curiosidade projetavam em sua mente uma compilação de imagens sangrentas que já vira nos filmes. Então abriu os olhos e observou a – real – cena mais chocante ali: a família de Mike estava sentada na parte traseira da ambulância, alguns paramédicos o cercavam e dois policiais faziam perguntas. A irmã dele estava nos braços da mãe, envolvendo e sendo envolvido fortemente, com as lágrimas incessantes descendo-lhe os olhos inocentes e extremamente vermelhos. A mãe respondia algumas perguntas, balançava mais a cabeça do que falava, e parecia distante. Nenhuma lágrima caía de seus olhos, estava em choque, e Stacy parecia identificar uma pequena faísca de loucura naqueles olhos – já tinha visto aquilo no dia anterior, embora já soubesse que não se tratava de um distúrbio mental. O pai era quem parecia menos chocado, respondia às perguntas com uma sincronia espantosa, parecia calmo – Stacy sabia: apenas parecia –, mas os olhos vermelhos evidenciavam as poucas lágrimas que transcorriam rosto abaixo.
- Ele está morto. Mike está morto. – Ela sussurrou. Parecia ter dito aquilo mais para si mesma.
- Sim, mas...
- E tudo aconteceu exatamente como você disse. – Ela continuou, mal pareceu notar que Evan tinha dito algo. Seus olhos ainda se mantinham sobre a família destroçada de Mike, e enquanto falava, estava totalmente perdida em todas as inevitáveis conclusões e em todos os perfeitos encaixes que a história toda passava a ter. – É por isso que eu acredito em você, Evan. Não importa o que os outros digam ou vão achar, eu sei que você diz a verdade e que não está louco, como eu julguei ontem à noite. Tudo se encaixa. Ninguém está louco aqui. É tudo verdade. Tudo verdade, Evan.  Não há loucura aqui, ninguém está delirando. A loucura só está no fato de isso existir, mas não no fato de estar acontecendo...
- O que você está falando? – Ele a interrompeu. Estava preocupado, já que quem deveria estar daquele jeito era ele e não ela. 
Ela girou o rosto na direção dele e piscou várias vezes. Esfregou as costas das mãos pelos olhos e falou:
- Ninguém está ficando louco. Chris me contou que ao chegar aqui, de manhã, ele entrou na casa antes que a polícia chegasse. Ele me contou o que viu lá dentro Evan.
- O que ele viu?
Stacy se calou. Engoliu em seco e respirou profundamente. Estava assustada com tudo o que acontecia, principalmente pela perfeição em que tudo se encaixava. As mãos novamente estavam tremendo, então o fitou com os olhos novamente cheios d’água.
- Poeira. Saída da lareira, Evan.
Poeira.
Aquela simples e curta palavra foi o suficiente para sobressaltá-lo. Seu coração pulou a mil dentro do peito, e parecia ser comprimido por uma mão musculosa e invisível. Sentia que, se ele não fosse sair pela boca, iria estourar ali dentro. Suas mãos que antes apertavam o volante se desfizeram e caíram sobre os joelhos. Poeira. Saída da lareira. A boca se fechou, os dentes estavam trincados num êxtase de medo e adrenalina, o coração bombeando o sangue por todas as suas artérias e veias numa velocidade nunca antes sentida, as palmas das mãos suadas e um filete frio de suor descendo de suas têmporas até pingar de seu rosto, caindo sobre o casaco pesado. As pupilas pareciam ter se dilatado, se é que isso poderia ser possível devido às sensações que sentia.
- Poeira? – Ele repetiu.
- Como nos seus pesadelos.
Evan tentou olhar com mais atenção para ela, mas foi impedido.
Seus olhos se arregalaram – mais do que já estavam. Ficou boquiaberto, e teve a certeza de que as coisas já começavam a acontecer. Era 24 de Dezembro, logo seria Natal e tudo o que ele sonhou se cumpriria. Stacy tentou seguir seu olhar, mas Evan não permitiu, segurou o rosto dela, mantendo-o na direção do seu. Forçou um sorriso e disse “tudo vai ficar bem”. Ela quis olhar, mas desistiu assim que percebeu que ele a impedia de ver alguma coisa. Ela se deu conta de que realmente não queria ver, resistindo até o fim.
Evan girou a chave do carro e sentiu o motor tomar forças. Sem hesitar, ele saiu dali, mantinha uma velocidade lenta e ao chegar ao final da rua, olhou para Stacy.
- Você pode me dizer o quê, exatamente, Chris lhe contou de manhã? – A voz soara gentil e num tom de permissão, deixando claro para ela que não a forçaria caso não quisesse falar.
Stacy concordou, apenas fazendo um sinal positivo com a cabeça.
Evan agradeceu, e forçou um sorriso animador.
Ele não estava nem um pouco animado. Principalmente quando olhou pelo retrovisor e viu a cena que impedira Stacy de observar: o corpo dentro de um saco preto, sendo colocado em um dos carros da ambulância.
Ele engoliu em seco.
Era o corpo sem vida de Mike.

Com o celular preso ao ouvido, Stacy já não tinha mais a noção de quantas vezes tentara ligar para o número de Chris. Já soltava alguns palavrões a cada vez que a voz dele pedia para deixar uma mensagem. Aquela deveria ser a centésima vez que fazia aquilo, quando alguém bateu com força exagerada na janela do carro.
Estava sozinha ali dentro, enquanto tentava todas aquelas ligações. Evan havia saído há quase dez minutos, na intenção de procurar Chris por aquelas redondezas do bairro. Há algumas horas o procuravam, e era como se ele tivesse desaparecido do mapa e tudo logo após a morte de Mike. Para olhos comuns, tal atitude pareceria muito estranha; para os olhos das autoridades, pareceria extremamente suspeito. Mas, para os olhos de Stacy Watson, parecia uma típica reação de Chris para fugir de toda a confusão e incerteza que o cercava. O conhecia suficientemente bem para saber que ele estava com medo e sozinho, afinal, quem não se sentiria assim com a morte do melhor amigo? Stacy sentia pena dele, Chris estava só e desarmado.
Espantou-se com a forte batida na janela. O celular pulou de sua mão e caiu sob seus pés, ela quase soltou um grito quando olhou quem estava batendo. Não sabia se resmungava devido ao susto ao se ficava aliviada. Não era Evan, embora quisesse que ele voltasse imediatamente – estava preocupada, já que tinha uma bizarrice solta pela vizinhança e ela estava diretamente ligado a ele.
Era Chris.
Por um breve segundo, Stacy hesitou em abrir a porta ou baixar o vidro.
Ele mais parecia um homem louco prestes a cometer um crime. Ou, pior: um homem louco que acaba de cometer um.
- Stacy, abra essa porta! – Ele tentou falar com a voz baixa, apesar de não ter tido tanto sucesso. Mas ela notou que, sob aquela face de desespero, a voz assumia um tom de súplica, e não de ódio.
Stacy abriu a porta. Não hesitou mais.
Chris olhou em volta, como se alguém o estivesse observando e abriu a porta do carro completamente, agachando-se para ficar ao lado dela. Suas mãos seguraram as dela num aperto forte e violento, a garota sabia que tudo não passava de reações ao desespero. Chris a olhou profundamente, mordeu os lábios com força e perguntou:
- Onde está aquele seu maldito amiguinho?
- O quê?
- Evan! – Ele tentou gritar, mas se controlou e olhou em volta. Pôs o olhar novamente no rosto de Stacy e perguntou: - Onde está o seu maldito amiguinho Evan? Hein?
- E-Ele está te procurando. Onde você estava Christian?
Ele apertou as mãos dela com mais força. Stacy se contorceu e puxou as mãos, e só percebeu que Chris agia inconscientemente quando ele se deu conta do que estava fazendo e pediu desculpas três vezes seguidas. Ela o perdoou no mesmo momento e estreitou os olhos, confusa, para ele.
- O que houve, Chris?
- O que houve!? – Repetiu logo em seguida. – Aquele seu amiguinho está me perseguindo, eu sei que está. E o pior de tudo é que ele te colocou nessa, você está junto com ele. Soube que andaram perguntando o dia inteiro por mim, você e ele. Que droga, Stacy. Qual motivo o nerd maluco teria para me procurar? Ele nunca teve, até ontem.
Stacy tentou responder àquela loucura, mas Chris ergueu a mão e continuou falando:
- Ontem ele apareceu com aquele papo estranho. Tá... De início a gente achou tudo engraçado. Mike ainda estava comigo, e tenho certeza que ele só está morto porque foi o primeiro a... Droga! Seu amiguinho começou tudo isso ontem, nos contando sobre uma história maluca de natal e desejos, ou presentes. Tanto faz. Ele disse que estávamos correndo perigo. Perigo de morte. Dá pra acreditar? Enchemos aquele idiota de porrada. E foi tão divertido, vê-lo gemendo na neve, implorando para que voltássemos e escutássemos. Ele mesmo disse que iríamos morrer, Stacy. Ele mesmo! Nós o ignoramos e agora veja o que aconteceu! Parece até aqueles filmes de terror. Eu... Eu não sei o que tá acontecendo, a única coisa que tenho certeza é de que isso tudo é culpa do seu amiguinho, ele está atrás de mim e te colocou nessa. Me diz, ele te machucou? Está te ameaçando? Stacy, se ele estiver...
- Chega. – A voz imparcial e grave cortou as palavras de Chris e fez com que ela olhasse para trás. Evan estava do outro lado do carro ouvindo a tudo, seus olhos fitavam Chris com algo indecifrável demais. – Chris, chega.
- Sai daqui! – Chris pulou para trás, levantando-se de imediato. Ficou distante do carro. Stacy ainda estava parada sem se mexer, observando a tudo com um nervosismo crescente. – Você matou o Mike, e agora está atrás de mim! Eu sei!
Stacy moveu o pescoço para olhar na direção de Evan, e de início notou que ele se mantinha frio - até mesmo calculista, julgando aquele olhar imparcial – mas logo seu corpo estremeceu ao perceber uma súbita mudança no rosto dele: os olhos se arregalaram e ele deu dois passos para trás, totalmente hesitante, enquanto as mãos se estendiam num sinal de desistência e súplica. Ela girou novamente o rosto, de volta, para observar o que tanto espantara Evan, e, ao ver o que era, abriu a boca num grito que não saiu.
As mãos trêmulas de Chris seguravam um pequeno e reluzente revólver prateado. O dedo indicador deslizava pelo gatilho, e o cano do revólver era apontado na direção de Evan, sobre o carro. O alvo fitava exatamente a saída do revólver, esperando que a qualquer momento dali saísse o projétil que ceifaria instantaneamente sua vida.
Evan só pôde esperar. Percebeu que Chris dava a volta no carro e se aproximava cada vez mais com a arma em sua direção. Enquanto um se afastava cada vez mais, o outro se aproximava com agonia, dúvidas e medos.
- Sabe, Evan... – Chris começou – Eu nunca gostei de você, desde a primeira vez que te vi. Nunca cheguei a desconfiar, é claro, que você era outra pessoa sob aquela imagem de pirralho maluco...
- Chris, por favor, não faça...
- Cale-se. – Chris o interrompeu, e não precisou gritar para que fosse obedecido. – E olha só: você não é nada diante da morte, não é? Pode ter matado o Mike, pode ter brincado comigo e pode ter forçado a Stacy a ficar do seu lado. Mas isso tudo termina agora, Evan. Agora...
- Chris! - Stacy chamou com a voz embargada em medo e num choro iminente.
Chris olhou rapidamente para trás, e viu a imagem de Stacy em prantos. Ela não se afastara do carro, apenas apoiava os braços sobre ele enquanto observava toda a cena. Ele só pôde lamentar. Sabia da insistência dela para não fazer aquilo, já que imaginava que as coisas poderiam se resolver de maneiras pacíficas. Mas Chris não tinha as mesmas expectativas e também não gostava o suficiente de Evan para questionar a possibilidade de não puxar o gatilho.
Ele odiava aquele moleque. Era o bastante.
- Eu sinto muito, Stacy. Isso é tudo o que você merece, pirralho. Vai se foder.
Chris dobrou o dedo e fez uma leve pressão sobre o gatilho da arma, ela já estava destravada, como se já esperasse aquele momento. Evan deu outro passo para trás, movendo o corpo de forma súbita numa fracassada tentativa de correr e salvar a própria vida, mas, ao invés do ato ajudá-lo, as consequências foram contrárias: a atitude pegou Chris de surpresa, e, julgando que mesmo o ar que Evan respirava fosse lhe causar algum mal, a única e imediata reação que teve foi iminente e precipitada – afinal, talvez ele levasse mais alguns segundos ou minutos de hesitação e preparação. Chris apertou o gatilho.
Bum.
Stacy apenas conseguiu gritar.
Evan caiu no chão, apagado e com um novo buraco no corpo.

***

O carro dos pais de Evan subiu a calçada derrapando, e por sorte parou antes de atropelar alguém ou colidir em uma árvore. Parou na frente da casa de Chris, ele pulou para fora do carro deixando a porta aberta e deu a volta, fazendo o mesmo com Stacy. Ela esteve quieta ao longo de todo o percurso, embora Chris lhe fizesse milhares de pedidos para que falasse alguma coisa. Stacy não chorava, mas seu olhar estava perdido, as mãos tremiam e ela não parecia habitar o mesmo mundo por ainda lembrar a imagem de Evan caindo no chão com um atiro estourando seu peito – e ela não tinha certeza se a imagem do líquido vermelho espirrando era de fato verdadeira.
Stacy estava em choque. E por isso foi arrastada por Chris pelo pulso até a entrada de sua casa. A porta estava entreaberta e quando entraram, ele parou ao enxergar quem o encarava lá de dentro.
- Kate? – Perguntou, quase num grito.
O nome deveria causar, no mínimo, uma histérica reação em Stacy – afinal, não seria todo dia em que uma ocasião daquelas seria possível -, mas ela nada fez, apenas moveu rapidamente os olhos na direção da garota que estava diante deles. De braços cruzados e batendo os pés no chão, a garota – Kate – lançou um olhar de indignação para Stacy, como se a presença dela fosse uma ofensa, em seguida seus olhos pularam para Chris. Ela estava visivelmente furiosa.
Stacy nada fez. Há alguns dias teria muito prazer em planejar algo ou atacar a garota, mas naquele momento sabia que coisas mais importantes aconteciam – Evan estava sangrando no chão, talvez já estivesse morto logo no momento em que a bala lhe atingiu o peito –, e partir para uma briga com a garota que estava transando com seu ex-namorado realmente não se enquadrava em sua lista de “prioridades para a véspera de Natal”.
O único pensamento - distante dos atuais acontecimentos - que passou por sua cabeça, foi como Evan estava certo o tempo inteiro e como tudo o que ele dizia era verdade. Tivera um pesadelo sobre a briga que ela teve com Chris e dissera com exatidão o número da última ligação – e frequentes, ao longo das semanas anteriores – que ele recebera. “Como Evan saberia de algo tão íntimo? E, principalmente, com tanta exatidão?”. Stacy sentiu a falta de ar em seu corpo, o medo extremo deu lugar àquele estado de choque devido à morte que presenciara há alguns minutos.
Ele estava morto. Inconscientemente, a garota sabia que a única esperança para todos, nas vésperas daquele perigo tão iminente, era o próprio Evan. Somente ele sabia o que acontecia.
Quem começa, termina. E a única pessoa que poderia dar um término ao terror, estava morta.
Moveu o rosto, só então percebendo que Chris e Kate discutiam freneticamente. As mãos da garota constantemente gesticulavam algo na direção de Stacy, apontando o dedo indicador como um acusador convicto. Chris já estava ao longe, não mais apertando seu pulso, mas com as mãos segurando o corpo da garota com certa violência, numa tentativa de mantê-la distante de Stacy.
- Estamos perdidos. – Stacy pareceu voltar ao mundo que seu corpo habitava. Olhou, embora ainda estivesse perdida, na direção de Chris e ignorou a presença da garota, apesar de não mais ser pessoal, ainda distante. – Estamos perdidos. – Repetiu.
A briga cessou. Os dois olharam para Stacy com os rostos repletos de dúvida.
- O que ela tá falando? – A garota perguntou, seus olhos analisavam Stacy dos pés à cabeça como se fosse um alien.
- Hein? – Dessa vez era Chris quem ignorava a garota.
- Estamos perdidos. – Stacy parecia mais um disco riscado – Estamos perdidos.
Embora o estado dela fosse deplorável, as feições de Chris não abandonavam o desespero. Estavam ambos na mesma situação, no mesmo rio, porém em margens opostas. O Assassino e a Testemunha. O primeiro, assolado pela morte do amigo e - mesmo que lá no fundo - espantado por tirar outra vida; a segunda, horrorizada por presenciar o ato de uma vida ceifada diante de si, e abatida pela ideia de que a vítima morta era a única chance de sobrevivência para todos ali presentes. Evan sabia como deter aquela criatura, ou talvez estivesse a um passo de descobrir. E agora estava morto...
Chris aproximou-se novamente de Stacy e parou à sua frente. A respiração ofegante evidenciava o temor que as palavras dela causaram dentro dele. A mente perturbadamente paranoica de “recém-assassino” cogitava a possibilidade dela se referir a Evan, que se caso tivesse sobrevivido, faria questão de eliminar aquele que tentou matá-lo. Chris não duvidava da mente sombria do nerd. Isso o fez lembrar que não garantiu se o corpo do moleque estava realmente morto, já que por pura adrenalina entrara no carro obrigando Stacy a ir com ele.
E se Evan estiver... Vivo?
Ele ergueu o rosto de Stacy e penetrou os olhos nela.
- O que você disse? – Perguntou.
- Estamos perdidos.
- Por que?
- Estamos perdidos!
Ele a agarrou pelos braços e sacudiu diante de si.  Stacy mal parecia perceber a tonalidade agressiva e animal nos movimentos de Chris, os olhos ainda perdidos pareciam enxergar muito além do que estavam a sua volta.
- O que quer dizer com isso? Vamos, diga!
Ela não respondeu, já que não conseguia dar mais explicações ou pensar racionalmente sobre qualquer coisa referente aos acontecimentos das últimas 24 horas. Acreditava em Evan, e também faria qualquer coisa para salvá-lo ou voltar no tempo. Não somente para que ele salvasse suas peles, mas porque ela queria resolver assuntos pendentes. Recuperar o tempo perdido em que estiveram juntos e não enxergaram um ao outro.
Enquanto Chris exigia uma resposta clara de Stacy, Kate observava a cena com confusão e ódio. Não acreditava que Chris ainda estivesse com a namorada depois de todas as promessas que a tinha feito. Mesmo na noite anterior, ele dera sua palavra de que não estaria mais junto de Stacy e que enfim assumiriam algo mais sólido. Kate acreditava em tudo o que ele dissera, tendo quase certeza de que todas as vezes que saíram juntos e escondidos, todas as noites que fizeram sexo no quarto ou no carro dele, seriam suficientes para mostrá-la que as intenções eram mais sérias. Ela não iria tão longe caso não acreditasse piamente naquilo. Ou iria?
Sentia-se traída. Repudiava o fato de Stacy ainda estar ao lado dele. Há alguns dias soube que garota teve a total certeza de que estava sendo traída, soube que ela sabia de sua existência. Mas Kate não temia o fato, não tinha receio do que a namoradinha traída poderia fazer. Ela até sorria disso, se divertia sempre que avistava Stacy no colégio ou pelas ruas... “Vadia”, era o que tinha vontade de gritar para ela. Mas não podia. Quem sabe um dia o faria, e por julgar que tal dia se aproximava, é que seu espírito ardeu em raiva por vê-los chegando juntos e ao notar certa intimidade ainda permanente entre eles. Kate queria matar Stacy, não literalmente, claro, mas faria qualquer coisa para...
Crec.
O estalo chamou a atenção de Kate. A garota girou o corpo na direção do som e esqueceu totalmente – como num passe de mágica – a briga que se desenrolava. Ouviu novamente o estalo, agora mais forte, e atraída por ele, aumentou o ritmo dos passos e inclinou o rosto de lado para que os ouvidos identificassem melhor de onde vinha o som. Chegou a olhar para trás na direção de Chris e Stacy, semicerrou os olhos quando percebeu que o motivo para ter saído dali não era tão importante, até desejou voltar de onde viera, mas então o estalo continuou e a atraiu novamente, fazendo-a esquecer do ódio que há pouco sentia. Como num passe de mágica.
Kate continuou caminhando, tentada cada vez mais – por uma razão desconhecida e um desejo estranho – a descobrir de onde o estalo vinha ou o quê o provocava. Outra vez o estalo soou pela casa, e mais outra e mais outra... Foi quando Kate percebeu de onde ele vinha e seguiu certa de que logo chegaria até ele.
Pisou na sala de estar e não entendeu o que viu ali.
Tudo estava perfeitamente calmo e o estalo parou de ecoar, embora ela soubesse que era daquele cômodo que vinha. Kate caminhou hesitante e curiosa pela sala, olhando todos os objetos e mobílias, tentando descobrir o lugar daquele estalo – e o porquê de tanto atraí-la.
Crec.
Ela girou num pulo e seus olhos encontraram o lugar de onde o estalo veio bem a tempo. De início, um sorriso vitorioso e orgulhoso tomou conta dela, mas foi substituído pela confusão e espanto. Aproximou-se do lugar e virou rapidamente o rosto para o lado, ouvindo ao longe os gritos de Chris, outra vez desejou ir naquela direção, mas suas pernas não obedeceram e, por mais estranho que isso fosse, ela ignorou e inclinou o corpo ao se aproximar.
Olhou com mais atenção quando ouviu outro estalo, ele se repetia agora com menos intervalos de tempo. Mal podia acreditar que aquela coisa estranha – e era como se algo estivesse descendo, sinalizando sua chegada como passos anunciam – vinha da lareira. Pôde notar que aos poucos ela cuspia poeira, algo estava realmente... Descendo!?
Crec. Crec. Crec. Crec. Crec. Crec.
- Mas, que diabos, é isso…
Kate não teve tempo de cogitar as chances de obter uma resposta.
A poeira que antes saía timidamente tornou-se uma lufada forte capaz de jogá-la metros pela sala. Ela gritou forte quando bateu as costas em algo rígido que a fez voltar como uma bolinha batendo em um muro. Suas mãos procuraram o lugar onde a dor se concentrava e ao fazê-lo, mal pôde encostar as pontas dos dedos. A dor era alucinante e aguda, seus gritos aumentavam conforme a dor.
Logo percebeu que a dor nas costas era o menor de seus problemas.
Notou que alguém se aproximava, e embora a visão estivesse turva devido à dor, ela conseguiu identificar o relevo do indivíduo e suas roupas estranhas... Não, não eram estranhas. Eram perfeitamente normais para aquela época. Mas havia algo a mais naquilo, seus olhos... Os dentes, e o modo como sorria. Kate gritou novamente, agora de medo.
Stacy e Chris chegaram à entrada da sala de estar bem a tempo de presenciar a cena que se desenrolou diante de seus olhos incrédulos e amedrontados: a criatura acabara de cravar o objeto cilíndrico no pescoço de Kate, de modo que sua extremidade atravessou o corpo dela até as costas, ela sequer teve tempo de implorar por piedade.
O homem vestido à caráter retirou o objeto e o corpo de Kate bateu com força no chão. Ele se apoiou sobre a arma que acabara de usar contra ela e soltou uma gargalhada gutural, de modo que ecoou por toda a sala de estar como o aviso de uma ameaça iminente. Ele contemplava o corpo com orgulho, bem como um pescador faria ao posar para uma foto com o peixe de 200kg que acabara de capturar. Mas havia uma diferença entre aquele homem e um pescador: o segundo jamais teria nos olhos a perversidade e insanidade que o primeiro tinha. Jamais.
Stacy gritou ao ver a cena. Sua garganta com certeza não mais existiria depois daquilo.
Graças ao grito, o homem percebeu a presença daqueles dois. Ele gargalhou forte e lançou um olhar sadicamente divertido na direção de Stacy, contemplando Chris logo em seguida.
O garoto deu alguns passos para trás e por instinto agarrou no pulso de Stacy para que viesse junto. Ao fazê-lo, notou que o homem se moveu, apenas girou sobre os pés com a ajuda do objeto que mais lembrava uma bengala colorida em vermelho e branco – sem contar a coloração mais escura do sangue -, e o ergueu no ar, apontando na direção dos dois. Balançou a cabeça negativamente, reprovando a tentativa do garoto e gargalhou em seguida.
- Vocês dois, fiquem onde estão! Eram os presentinhos que faltavam. HOHOHO.
Os olhos de Chris se arregalaram de medo. Não entendeu o que o homem quis dizer e tudo o que desejava era estar longe dali. Ele apertou o pulso de Stacy e tentou puxá-la, mas se deteve ao notar que ela estava petrificada com aquelas palavras, como se soubesse o que significavam. Uma lágrima desceu-lhe o rosto e caiu no chão num pesar ensurdecedor. Chris sentia-se um idiota dos filmes de suspense que sempre é o último a tomar conhecimento das coisas.
Ele puxou o corpo de Stacy com violência e notou o homem dar um passo à frente. Pouco se importava com o que aconteceria, ele fugiria dali a qualquer custo.
- Tsc. Tsc. Aonde pensam que vão, crianças?
Chris parou ao ouvir aquelas palavras e lançou os olhos na direção de Stacy. Porque ela não se mexe? Porque ela não corre? Apertou ainda mais a mão nela e, olhando com impaciência em seus olhos amedrontados, revezando entre ela e o “homem”, gritou:
- Que merda é essa?! Quem é ele?!
Então obteve a resposta, mas ela veio do lugar de onde menos esperava: uma quarta figura, fraca e arquejante, rompeu a cena. Todos olharam em direção à ela e notaram uma um alguém manco e deplorável surgir com dificuldade no ambiente.
- Ele é... - Evan se arrastava com dificuldades, com a mão na altura do ombro estancando um ferimento que jorrava uma pequena quantidade de sangue. - Ele é o Papai Noel. - Conseguiu completar, por fim.


Nenhum comentário:

Postar um comentário