27 de maio de 2011

Trapo

10-9-1930

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.

Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um ele-
                                                                    gante
Bem sei: susceptível às mudanças de luz não é ele-
                                                                    gante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser
                                                                elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível,
Névoa, chuvas, escuros - isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego
Até amaria o lar, desde que não o tivesse
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.


Poemas de Álvaro de Campos, O eu profundo e os outros EUS, Fernando Pessoa.

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