18 de junho de 2012

Chuvisco de orgulho



Quando eu a beijei, naquela tarde de Sexta-Feira, seu hálito exalava um sutil aroma de café. Estava frio, as nuvens tomavam o céu da cidade e algumas gostas de chuva ainda despencavam das enormes mangueiras. Os carros se abarrotavam na José Malcher, buzinas gritavam o fervor da impaciência e os pássaros se espantavam. Era 17:15, eu ainda lembro. E ela estava lá, na frente de sua casa, ainda indecisa sobre minha visita e o beijo que eu acabara de roubar. A pele alva e perfumada evidenciava um recente banho, mas os cabelos vermelhos não estavam molhados. Era linda, como um sonho distante. Eu me aproximei novamente, ela deu um passo para trás. Hesitava em cruzar o portão de metal preto, aberto entre o conforto de sua casa e minhas – nada orgulhosas – intenções.
- Fala logo, o que tu queres? – Ela perguntou. Um tom vermelho já queimava suas bochechas, sob as poucas e antigas marcas de espinha.
Eu sorri ao vê-la daquele jeito. Principalmente por lembrar que ela tinha alergia a amendoim e que cantarolava Lyla, do Oasis, sempre que estava ligeiramente nervosa. Era um tique, mania irreversível.
- Eu quero voltar e ser aquele panaca de antigamente. Lembra? – Arrisquei. Não fosse o frio, eu estaria suando bicas de ansiedade. – Só pra variar.
- Tarde demais. – Ela suspirou, tentando fugir do assunto. – Eu tenho que ir, eu tava... fazendo... Tenho que ir.
- Ei. – Chamei. Senti a força de mil homens arrependidos naquele tom de voz. Era um súplica quase vergonhosa.
- Esquece. Já deu.
- Por favor.
Então segurei o pulso dela, um tanto forte no início. Ela congelou, ou talvez fosse o clima – 24ºc no mês de Janeiro em Belém era sempre desses invernos congelantes. Juro que tentei dizer mais alguma coisa, mas eu sempre fui assim: ótimo com as palavras em uma folha em branco, mas péssimo no cara à cara. Por sorte ela sempre soube disso, aí eu não precisaria me retratar.
Ela entendeu meu silêncio, desistindo da ameaça e da desculpa de assistir à novela das 6. Então esperou alguma atitude minha.
- Eu errei, admito. – Comecei, gaguejando e enrolando a língua duas vezes. Até pude ouvir uma risadinha vindo dela. Ignorei e prossegui. – Errei pra caralho, mas sempre faço isso.
- Sempre. – Ela frisou, irônica.
- Mas tu fizeste pior. – Joguei baixo, espetando a ferida.
- Joga na cara. Típico!
Trinquei os dentes. Deslizei a mão do pulso dela até os dedos, entrelaçando-os.
- Não joguei na cara. – Olhei para a casa dela. Podia ver da janela a sala, a televisão desligada e a luz apagada. Estava sozinha, mas eu já sabia. – Eu não preciso disso. Só queria dizer que... Merda, eu vacilei, nós dois vacilamos! Dane-se se você vacilou mais. Eu ainda tive forças pra vir aqui, agora, pra pedir desculpas e melhorar as coisas. Né? Eu não ligo pra nada que aconteceu, eu até perdoei. Por isso só vim aqui pra te pedir que deixe de ser orgulhosa. Não te leva à nada. E me deixa muito, muito, muito triste. Saca?
Ela tinha olhos escuros, contrastando com a brancura da pele. E naquele momento, aquele olhar magnífico e ligeiramente desdenhoso despencou em direção ao chão, relutando profundamente. Ela pensou, pensou e pensou de novo, num intervalo de quinze segundos. Aí apertou minha mão brevemente, acariciando com a pontinha dos dedos. Era um sinal. Pude então relaxar.
- Tenho que entrar. – Soltou minha mão. Havia um sorriso escondido no canto da boca, singelo e vulnerável. Também havia um desse em mim. – Me liga hoje à noite?
- Ligo.
- Jura que liga?
Ou eu era idiota de acreditar em mentiras ou ela realmente se preocupou.
Assenti devagar, dando um sorriso mais relaxado. Ela respondeu com a mesma tonalidade e entrou, mas não fechou totalmente o portão. Pôs o rosto para o lado de fora e me olhou, tentando dizer alguma coisa que eu realmente ansiava ouvir.
- Orgulho não é uma coisa boa? – Perguntou, com a expressão impenetrável.
- Não pra mim.
- Tu nunca foi desses. Idiota, precisa ser mais esperto.
- É, eu... Acho que... Sei lá. Aham.
Ela deixou uma risada boba escapar.
- Me acostumo mal, perco o orgulho de tanto me misturar contigo. – Falou, outra vez desdenhosa.
- Azar o teu.
- Sorte a tua. – Ela ficou séria de novo. – Não esquece de me ligar.
- Não vou.
E aí ela se foi, acenando rápido antes de fechar o portão. Fiquei parado ali por um tempo indeterminado, senti um leve chuvisco e o sinal da chuva voltando. Mas não ouvi os passos dela. Não escutei seus pés cruzando o jardim e entrando na casa. Juro que ela ficou ali, parada. Talvez estivesse arrependida, quem sabe estivesse pensando na conversa rápida com menos de 10 minutos? Sei lá, nunca fui capaz de decifrar sua mente. Mas juro que permaneceu lá, assim como eu.
Ela, ignorando o orgulho.
Eu, esperando a chuva cair. 

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