22 de junho de 2012

Sangue do meu sangue



Todos argumentavam e gritavam ao meu redor.
O revólver estava em minhas mãos, assim como a liderança daquele bando de renegados sobreviventes, uma aglomeração de velhas chorosas e machos que pensavam serem alfas. Já ela estava entre meus braços. Ela se agarrava a mim num aperto de dúvida e medo, pois o fervor da discussão de tantos adultos enfurecidos a assustava. Além disso, havia o fato de sua boca despejar um suave filete de sangue. Havia nela a dor, havia nela o terror e o medo. Apertei-a em um abraço mais caloroso e protetor. Ela chorava, as lágrimas caindo de seus pequeninos olhos azuis. Eu era o único a quem ela depositava confiança, o único porto seguro restante, o último laço de afeto, família e conforto.
Ex-moradores do mesmo útero.
A discussão continuava, os gritos, as mãos eloquentes e os olhares perversos, exigiam todos de mim a decisão que eu não poderia tomar, a decisão que eu não deveria sequer cogitar.
- Veja o que aconteceu com aquele homem! – Aldair bravejou com a voz contida, para não fazer barulho. Apontou o corpo do morto a cinco metros de nós. – Tu precisas fazer alguma coisa ou então nós teremos de fazer, porra!
- É! Decide alguma coisa! – Ao fundo alguém gritou.
- Isso! – E ao fundo alguém concordou.
As vozes não faziam sentido na minha cabeça. Eu nem sabia a quem pertenciam, embora dez dias enclausurado em um depósito de esquina, cheirando um ao rabo do outro, o fizesse se aproximar dos outros, decorar nomes e remoer antipatias.
Foi o comentário de alguém ao lado que me trouxe de volta à realidade:
- Ela é só uma criança. É a irmã dele. Vocês precisam ter calma! Precisam entender – Era Joyce. Seios fartos e olhos incrivelmente castanhos, as únicas coisas que eu distinguia e prestava atenção nela, além de toda a compreensão e ajuda que sempre me prestava. – Vocês estão loucos gritando desse jeit...
- Que se foda! Ela tá contaminada com aquela coisa! – Aldair contestou. Havia uma pitada de culpa e arrependimento na voz dele, mas eu entendia. No fundo, eu entendia.
O que precisava ser feito, teria de ser feito.
Ela se agarrou ao meu corpo. Não entendia o que se passava, mas o corpinho de sete anos exigia proteção. Tremia de medo, como se pressentisse o que estava por vir. Guardei o revólver na cintura e retribui ao abraço, envolvendo-a firmemente entre os braços. Olhei para o corpo do homem ali, estirado e morto. Um pegajoso e profundo orifício aberto no topo de sua cabeça, a massa encefálica, a massa cinzenta e todas as outras expostas, o lugar de onde saíra a coisa, a verminose, a criatura que consumira O cérebro após amadurecer naquele estranho período de incubação. A boca do homem também eliminara um pequeno fluxo de sangue constante nos dias anteriores, assim como ela eliminava em meio às lágrimas.
Era o sinal que precedia o grand finale. 
Em um ou dois dias, talvez as convulsões começassem e talvez entrasse num estado aparente de catalepsia, e algumas horas depois a verminose consumiria o cérebro e romperia o crânio.
Então viria o silêncio.
E ela já não mais estaria aqui, a não ser aquela coisa arrastando-se pelo chão e urrando um som esquisito, rouco, desesperado, em busca de ar, de outro corpo, de sobrevivência e de proliferação.
- Calem a boca, caralho! – Gritei, finalmente. – Calem a porra da boca!
- Não tem o que pensar ou esperar, cara. – Aldair acalmou o tom de voz e aproximou-se. – É só uma criança, eu sei, mas ela foi contaminada. À essa altura nós dois sabemos onde aquele merda já deve estar. – Ele cutucou a própria cabeça, na vã e indiscreta tentativa não apontar para ela. – Tu sabes o que precisa fazer agora. Não tem opções, você tens que...
Matá-la? – Fiz a derradeira pergunta retórica, sarcástico.
- Tu não tens que fazer isso. – Joyce interveio, tentando me acalmar. – E vocês? – Olhou em volta para todos os tantos heróis covardes e cheios de opiniões. – Perderam a cabeça?
Só então eles finalmente se calaram. Só então finalmente houve silêncio.
- Joyce? – Chamei.
- Sim?
- Aldair? – Sussurrei.
- O quê?
Encarei-os brevemente, depois ergui o rosto para olhar cada um dos outros em volta. Agarrei a menina no colo, segurando-a como um bebê recém-nascido – eu ainda lembrava do primeiro choro e a primeira vez que abriu os olhos. Ela passou os bracinhos em volta do meu pescoço e escondeu o rosto em meu ombro. Eu a apertei, involuntariamente. Senti algo enrolar na minha garganta, aquele nó apertado, aquela corda a sustentar seu corpo no ar, balançando, balançando, balançando.
Levantei-me, ainda encarando todos os outros.
Sobre pesos balançando, eu também sentia outro peso em mim: o do revólver preso à cintura, o do ferro frio e silencioso, o do ferro que berrava a solução.
- Tá tudo bem, não precisam se preocupar. – Sorri, meio catatônico. – Tá tudo bem.
Saí dali.
Joyce tentou protestar, ela tentou mover os lábios, porém tudo o que conseguiu foi colocar as mãos no meu braço e me conduzir um olhar de companheirismo, daqueles que te dizem “não faz isso”.
Mas precisava ser feito.
Deixei aquela parte do depósito em silêncio, recebendo igual silêncio de todos aqueles malditos covardes. Agora eles sentiam remorso e arrependimento, na manhã seguinte, entretanto, tudo estaria bem, porque estariam vivos. E não teriam de fazer nada, não teriam de carregar carga alguma. Eles queriam apenas sobreviver, às custas de qualquer dilema, concepção ética ou moral. 
Sobrevivência.
Caminhei até os fundos do depósito, cruzando a porta que levava à dispensa. A menina agarrou-se a mim, sequer imaginando o que aconteceria dali em diante. Engoli em seco. Ajoelhei-me no chão e levei as mãos à cintura. Senti seu perfume suave de lavanda e contemplei seus olhinhos azuis.
Forcei um sorriso.
Eu deveria encerrar e ao lado dela estar no último instante de suspiro e de última consciência.
Eu, somente eu.
Pois era ela sangue do meu sangue. 


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